segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Conversa de Kali e Gaia

por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

No início era o ruidoso fluir das veias. Um som em constante movimento. Ficou apertado, a expulsão, a força do fim da escuridão, o início da luz. Veio o verbo, os adjuntos adnominais, os olhares, o toque, o silêncio e a solidão. Fez-se o barro. Barro de estrelas cadentes. Anjos caídos em um mundo de fantasmas.

Foi-se o tempo das bolhas de sabão, dos sonhos, dos elefantes vermelhos, dos espíritos de asas. Chegou o tempo de escolher a forma para entrar, as algemas e bolas do pé,  tempos de dilacerar as partes para encolher-se a fim de representar um molde. Fujo, desinformo, fluidifico.
Olho no espelho. Sangrava. Pedaços vermelhos de mim caiam no vaso. Carmins, lindos, com cheiro de vida. Faço dos dilasceramentos das minhas entranhas meu batom, minha pintura de guerra, meu tratado de paz. E danço na sala vazia, me entrego e experimento sensações de estar desapegada de mim. Entro no fluxo do universo, no extase de ser EU.

Aceito o chamado e o destino de ser um portal de anjos. Sento na beira do rio e ouço as vozes das águas, o sussurro das árvores, o culto de encontro com a minha natureza feita dessa mesma essência. A entrega ao sagrado terreno em forma de nuvens, flores, animais, água, luz, terra, éter, vento, raios, trovões e tempestades. Tempo fechado, mar revirado, natureza brava. Apequena-nos diante da força maior. Destrói egos inflados. Como ser hipnotizada pelas nossas tempestades das estranhas entranhas.

Há algo, no entanto, que sempre permanece que mora dentro de nós. Barro das estrelas que balança com os ventos que sopram, queima nas febres da alma, giram nos redemoinhos de vento. Permanece lá, intacto, sagrado.

Piso no lodo do fundo do rio. Ele era eu de verdade. A lama entrando por entre os dedos, suportando toda a fluidez das minhas intensidades, se adaptando a pisada, fazendo a estranheza macia e gosmenta do caminhar. Mangues são fétidos por sua riqueza, lamas são ricas e nos lembram sujeira. Como tantas coisas que achamos serem sujas como o sangue lunar das entranhas. Aquela parte de nós que se sacrifica para o renascimento.

O sangue que nossos lábios derramam é a lama do mangue, sangue da terra. E por mais que tenhamos sido moldadas, amputadas, dilaceradas, chega a hora que a gente não sabe mais quem é. Achamos que somos as formas. Esquecemos que somos o barro. Até que a forma se vai. Dissolvemo-nos nas lágrimas. E viramos a lama que faz a caminhada macia, entrando entre os dedos sendo sangue da terra.

Tudo faz sentido afinal. Sentido de apenas ser. Sem formas e livres de amarras. A tocar o amor sem formas nem padrões, nem nada mais. Enquanto o mundo se toca para sentir, encontro o que toca o sentir. E fim.

2 comentários: