quarta-feira, 29 de junho de 2011

Unhas quebradas



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Luisa Gunther


As unhas descascadas a lembravam da perecível natureza da vida. 

Os tons avermelhados que embelezavam as unhas vaidosas, esvaiam-se em pedacinhos sem cor.  O tempo era implacável. Todo o cuidado e esmero em polir e pintas as unhas, era sempre pouco. O tempo vinha, e apagava as marcas feitas nas pontas de seus dedos. Levava embora a coloração avermelhada em poucos dias, sempre sem avisar a hora da ruptura. Quando percebia, as cascas já haviam caído, mostrando-lhe o branco que roia as unhas. 

Desejou, por um momento, que elas ficassem ali, sempre vermelhas, perenes, a acompanhar-lhe a trajetória. Desejou que tudo fosse eterno e colorido sem retoques de tempo. Mas o tempo vinha, com o imprevisível que corre na suas veias.  Vinha e voltava, levava e trazia generosas doses de mudanças. Mudanças para as quais nem sempre estava pronta. Mudanças desavisadas. 


Ela tentava agarrar-se no que sentia de vivo correr-lhe o peito - na doce ilusão de construir um castelo que não desmoronasse ao sabor dos anos. Doce ilusão de não sentir o abandono da intensidade a esvair-se na poeira dos dias.

Ventava. Ventos improváveis, ventos avassaladores - que dissipavam o que ela sabia certo. Que lhe balançavam o esqueleto, sem cessar diante do grito. Batiam portas e janelas, e a tristeza escondida soprava-lhe melodias aos ouvidos. 

O vento era bruto.

Mais uma vez era preciso recomeçar. Retirar o esmalte e cuidar das unhas quebradas. Seguir adiante sem o pedaço que faltava – e que ela sabia que se regeneraria de outra forma. O novo sempre vinha. Novas cores apareciam, e as unhas cresciam. Mas nunca no mesmo tom de outrora. Nunca a mesma unha quebrada. E ela queria tudo. Queria guardar dentro de si todas as cores que não mais lhe coloriam os dedos. Tudo o que já foi e o que ainda será. Sem perder o tom.

O tempo era bruto.

Sentia-se menina tentando segurar a areia da praia nas mãos. Quanto mais segurava, mais a areia fina escapava pelos pequenos dedos. E ela nunca conseguia pegar os mesmos grãos. A areia da sua infância sempre escorria ligeira. E, desde seus primeiros anos, ela já sentia a areia correr passageira – impulsionada pelo vento incessante da maresia. 


Areia que moldou toda a sua estrutura maleável, conduzida pelos anos. Podia senti-la quente ao fechar os olhos. Podia sentir a angústia de querer parar o tempo ali, naquela praia onde corria livre e solta. Onde derramou as suas primeiras lágrimas pelo que nunca mais é. Pelo amanhã inevitável que vinha lhe mandar crescer e calçar os sapatos. Pelo dia que amanhece sempre diferente do que já foi.

O tempo corria. As últimas mudanças de seus 33 anos choraram as mesmas lágrimas. A mesma dor de menina-mulher de unhas quebradas. O mesmo enterro simbólico do amanhã que já não é mais. As mesmas saudades sentidas a apertar-lhe as vísceras. O mesmo coração que se esconde emotivo pelos sentimentos que desgarra. O desapego forçado do tempo.

E as cascas continuavam a cair.

*texto publicado na 5ª Antologia do Beco dos Poetas. Poesias e Contos. 2010. p. 103-105. 
   

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Espelho de Leão

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcelos

Pele alva, cabelos dourados e longos como das antigas deusas. Entrou no quarto escuro cansada das miudezas dos dias cinzentos sem poesia daquele casarão. Queria festa todos os dias.

Ele, contudo, esperava o dia da sua dor deixar de doer, da ferida parar de latejar. Coçava e rasgava o meio do peito escondendo com a gordura o coração de menino guardado em um casaco de leão velho.

Ela estava cansada de se ver no espelho dele com tantos defeitos. Queria vestir as jóias, com jeans e camiseta e sair pelas ruas sem medo de ser assaltada. Queria ser notada, queria o amor e liberdade.

Tirou o sutiã, vestiu a camiseta branca e saiu bailando pelas ruas de pedras povoada de seres mecanicamente programados pelas pequenezas. Ela rodopiava com suas jóias e panos coloridos, sentindo o sol bater em seu rosto de menina e fazendo sua festa.

Era livre de qualquer adjetivo. Ela era ela, amando os gêneros sem pudor. E por algum tempo sentiu-se plena com seu jeans surrado e suas jóias valiosas.

Até que sua dança tornou-se rotina. Deixou de ser notada e sentiu saudade de casa. Estranhamente lamentou a falta de seu leão ferido. Voltou para o casarão e teve que esconder as jóias no baú. Prendeu o cabelo, vestiu o sutiã. Foi dormir no porão com medo dos rugidos da fera.

Algumas noites ela deitava ao seu lado. Ele oferecia a cabeça para ser acarinhado, mas negava qualquer afago. Amava suas feridas mais que qualquer jóia, mais que qualquer carinho. Ela nutria uma compaixão karmica pelo velho leão que se mordia e urrava de dor.

Não tinha, contudo, compaixão por si mesma. Às vezes abria o baú escondida e na poça de suas lágrimas via refletida sua beleza real, além do espelho do leão. Ela ainda era bela. Era ela.

Permanecia trancada no casarão certa de que um dia a resposta viria.Sonhava com o dia em que o leão deixaria no guarda roupa seu velho casaco.

Em sua roca emaranhava seu destino costurando seu proprio casaco no escuro e frio porão de sua alma. Sem perceber fez um lindo vestido enfeitado com lágrimas de estrelas cadentes.

Ela tinha ficado surda com uma vida de rugidos mas ainda ouvia a musica que tocava em seu interior. Naquela noite eclipsal bailou até que seus pés viraram asas. Lá do alto de seus devaneios percebeu que ela mesma tecera o casaco do leão, que também a noite ficava nu, adornado com as jóias do baú.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Para além das reticências





Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


Calou-se num silêncio quase ardido.

As palavras duras iam ecoando por dentro, reverberando em diferentes sílabas.  Quase muda, ela sentia o vento soprando com a dureza das palavras. Não havia muito que fazer, a não ser sentar e contemplar a dor espetada em tônica silente.

Ela contemplava. Quando o céu se abria em tons rosados, ela sentia que era hora de acolher a verdade crua de ser quem se é, mesmo que ainda não soubesse ao certo quem era. A verdade nua de sangue vermelho, que nunca mais poderia ser escondida com roupas coloridas. Que nunca mais caberia contida dentro de si.

Os ecos iam lhe dando pistas de sentires camuflados. E ela não sabia, não conseguia mais vestir o que já era. Nada mais cabia. Caminhava desencontrada, como nunca dantes havia ousado caminhar. Tão só, e tão estranhamente desconhecida.

Ela andava sem rumo nos descansos das tardes longas. Entre uma página e outra, uma xícara de café quente e um soluço, saia descalça 
sentindo a grama que já ia se fazendo rarefeita, na proximidade do ciclo das secas.

Nada pior do que a espera de uma passagem. Nada pior do que se sentir imóvel entre dois muros, que ainda não estão prontos para serem escalados. Do que estar de mãos atadas com a boca seca, cheia de sede de mergulho.

Ela sabia que logo secaria por completo, desapegando-se das ilusões das águas fartas. Que logo deixaria fluir e estaria enxuta, sem mais nada para ser consumido pela angústia de querer reter o liquido interior, que já vazava por todos os poros.

Ela choraria, sim, ela choraria. Tanto que não haveria mais nada para pingar de seus olhos fundos. Ela estaria rasa. Queimando em sua nudez branca, com o coração batendo na garganta. Pronta para ser fecundada por novas e desconhecidas águas. Pronta para ser reinventada em seu vermelho vivo.

Esvaziaria, por completo.

Já era hora de escrever algo para além das reticências. Um ponto final, um travessão, algo que sintetizasse este capítulo aberto. Uma exclamação, talvez, de surpresa e de susto por tudo que deixou sair. Por ela nova e seca, diante do espanto.

Acolheria até as interrogações, e os nãos que porventura aparecessem nas novas sentenças. Só não conseguia mais viver com as reticências. Com tudo que poderia ser, mas nunca é. Com tudo que nunca chegava. Que nunca era desenhado na folha branca. Que lhe tirava o ar, e não colocava nada de volta.

Já era hora da história ganhar um desfecho, fosse ele qual fosse. Fosse sol, fosse lua, força ou calmaria. Fosse nada, ou fosse vida.

Mas que fosse, enfim.