quarta-feira, 15 de junho de 2011

Espelho de Leão

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcelos

Pele alva, cabelos dourados e longos como das antigas deusas. Entrou no quarto escuro cansada das miudezas dos dias cinzentos sem poesia daquele casarão. Queria festa todos os dias.

Ele, contudo, esperava o dia da sua dor deixar de doer, da ferida parar de latejar. Coçava e rasgava o meio do peito escondendo com a gordura o coração de menino guardado em um casaco de leão velho.

Ela estava cansada de se ver no espelho dele com tantos defeitos. Queria vestir as jóias, com jeans e camiseta e sair pelas ruas sem medo de ser assaltada. Queria ser notada, queria o amor e liberdade.

Tirou o sutiã, vestiu a camiseta branca e saiu bailando pelas ruas de pedras povoada de seres mecanicamente programados pelas pequenezas. Ela rodopiava com suas jóias e panos coloridos, sentindo o sol bater em seu rosto de menina e fazendo sua festa.

Era livre de qualquer adjetivo. Ela era ela, amando os gêneros sem pudor. E por algum tempo sentiu-se plena com seu jeans surrado e suas jóias valiosas.

Até que sua dança tornou-se rotina. Deixou de ser notada e sentiu saudade de casa. Estranhamente lamentou a falta de seu leão ferido. Voltou para o casarão e teve que esconder as jóias no baú. Prendeu o cabelo, vestiu o sutiã. Foi dormir no porão com medo dos rugidos da fera.

Algumas noites ela deitava ao seu lado. Ele oferecia a cabeça para ser acarinhado, mas negava qualquer afago. Amava suas feridas mais que qualquer jóia, mais que qualquer carinho. Ela nutria uma compaixão karmica pelo velho leão que se mordia e urrava de dor.

Não tinha, contudo, compaixão por si mesma. Às vezes abria o baú escondida e na poça de suas lágrimas via refletida sua beleza real, além do espelho do leão. Ela ainda era bela. Era ela.

Permanecia trancada no casarão certa de que um dia a resposta viria.Sonhava com o dia em que o leão deixaria no guarda roupa seu velho casaco.

Em sua roca emaranhava seu destino costurando seu proprio casaco no escuro e frio porão de sua alma. Sem perceber fez um lindo vestido enfeitado com lágrimas de estrelas cadentes.

Ela tinha ficado surda com uma vida de rugidos mas ainda ouvia a musica que tocava em seu interior. Naquela noite eclipsal bailou até que seus pés viraram asas. Lá do alto de seus devaneios percebeu que ela mesma tecera o casaco do leão, que também a noite ficava nu, adornado com as jóias do baú.

Um comentário:

  1. Bailando por aqui Kalu. No meu casaco de centauro com os meus colares de sementes.
    Lindo texto.

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