terça-feira, 5 de outubro de 2010

Espinhas

por: Kali
Desenho Ana Vasconcellos

Era ela e seu bailar. Na sala vazia vinha e ia como quem não vai chegar. Estava no quarto vazio olhando o reflexo distorcido no espelho. Sentia-se bela com sua face alva, seus seios firmes, sua boca vermelha. Aproximava-se e uma pequena feridinha purulenta surgia em sua mente. Ela espremia como se pudesse colocar para fora todos os pensamentos infeccionados .Ouvia a voz de sua mãe a gritar:

- Você é gorda e feia. Ninguém vai gostar de você.

Ela se espremia até ver o sangue brotar em sua face, até sua obra de arte estar manchada pela feiúra que lhe ensinaram a vestir. A maquiagem cobria a ferida transformando-a na eterna atriz das novelas dos anos 80. Exagerada, dram[atica, descontextualizada e irreal.

Ela pintava da cor da pele a ferida escura com casca e pus que ela mesma criou. E chorava baixinho no canto do quarto lembrando do tempo que era bela. Todos os dias ela prometia não se ferir. Mas não conseguia. Era como se a voz se calasse apenas com as marchas funebres, manchas e ferimentos. É como se a dor só cessasse com a cena repetida. É como tudo só fizesse sentido se ela atuasse seguindo o sopro do ponto.

Em um ato único, um dia ela escutou uma outra voz, doce como uma canção de ninar. Melodia de menino feliz e brilhante que lhe soprava no ouvido as verdades que nunca ouvira.

Ela se sentiu bela e plena. Ela se olhou no espelho, viu as feridas e entrou em cena. De cara limpa, coração aperto, seio desnudo e corpo descoberto. Ela era Ela. Inteira em suas luzes e sombras. De que vale riscar a face da moeda? No cara e coroa encontrou o ponto de equilíbrio da moeda, que naquele bailar, rápido em translação, transformava-se em esferas, luzes e cometas. Na união das faces, encontrou o ponto em que não se é tudo ou nada. Apenas se é.

Um comentário:

  1. Lindo Kali, lindo! Com toda a sua beleza de apenas ser o que é: luz que invade, vento que sopra, amor que irradia.

    ResponderExcluir