terça-feira, 12 de outubro de 2010

Musica para Kali

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

Cansou-se de dividir-se pelo mundo. Buscou em cada um, o pedaço de si na tentativa de remontar-se. Visitou fantasmas do umbral, velhas almas que só habitavam cartas amareladas, memórias antigas em letras de amor.

Faltava-lhe ainda uma parte sem nome ou memória que ela não conseguia acessar. Uma peça feita de desejos, impulsos, sonhos e pesadelos. Um fragmento do tempo dos choros e peitos. Um pedaço sem palavras ou mente. Um não sei que apenas de corpo e sentimento.

Adentrou no labirinto escuro de suas entranhas  tocadas pela nova mãe. Passou pela mente e foi além, no lugar onde palavras não servem, refúgio de peixes cegos e pássaros surdos. Andou temerosa e escutou uma valsa antiga feita para Elise, mas que dizia tanto sobre ela. Ouviu a música e começou a entregar-se ao fluxo das lágrimas que despencavam de seus olhos míopes. E no mar de sentimentos sem nomes viu sua mãe sentada ao piano, confusa e perdida, manifestando sua infantilidade do terceiro setênio em forma de melodia. Uma música que exprimia seu medo de nascer mãe. Doce, profunda, leve e triste, como ela o é.

Em cada nota daquela cena, entendeu um pouco de si. Descobriu o quanto aquela melodia regia com notas e dança dos dedos o ritmo da sua vida. Vestiu-se de bailarina de cabaré entregou-se de braços abertos ao chão duro que feria seu coração. Sentiu medo de amar novamente aquela mãe pequena, de corpo de costelas. Sentiu o medo de não saber dançar a melodia. Face a face com sua tristeza, dançou com ela, sem ritmo, sem compasso, de rostos colados em união impossível.

No pulsar do coração em uníssono encontrou a percussão de sua música. Ela viu ao longe, entre lágrimas, sangue e escuridão, a peça que lhe faltava.

No corpo colado ao seu, nas mãos que afagavam os cabelos com cachos, ela parou de debater-se para permitir-se apaziguar. Sentou com medo da dor de suas feridas velhas e purulentas. Deixou-se tocar a face sem rosnar. As mãos maternas por cima das cascas que ela mesma causou, faziam reluzir a consciência perdida.

Ela saiu do quarto, ainda sem encaixar a peça. Mas certa de que agora poderá se completar.

Um comentário:

  1. Ai Kali, que linda melodia...posso ouví-la daqui.....lindas palavras. Lindo enfrentamento!

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