quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Flor estranha


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos




Havia chegado a primavera.

As primeiras chuvas lavaram a terra com a força das águas represadas. Águas esperadas durante tantos meses, ansiadas no tempo seco que a queimara em contradições. Havia chegado o momento de respirar o alento da umidade. O alívio do líquido gelado sob a cabeça quente. Respirou.

A terra perfumada pelas águas desabrochava em desconhecidas flores no jardim. Era tempo de flor. Tempo de suavizar a aspereza, de contemplar a beleza ímpar do que nasce da terra que atravessou as rachaduras do sol.

Ela havia chorado. Havia enfrentando algumas das suas securas de outros tempos. Ousou ser ela, despida de seus artifícios de fuga. Ela era flor estranha. Genuinamente cultivada por medos e desacertos de intimidade. Flor que cresceu em meio a outros elementos, invadida por diferentes feições que faziam dela o que ela era hoje.

Enfrentava o espelho, em pêlos nus. O hoje era um velho conhecido, escondido embaixo de diferentes panos que se acoplaram aos seus quadris. Que camuflaram um pouco do que ela, desajeitadamente, não conseguia ser. Mas ela era.

Estava no seu exílio. Tocando a sua profunda e necessária solidão. Começou a desbravar aquilo que doía, sem se esconder nas relações a habitavam como casa cheia. O hoje era um novo ciclo, que pairava sob o vazio de quartos e corredores. Era difícil enfrentar a mirada solitária da própria face. O silêncio de ser sozinha. De ser aquilo que se é.

Doía. Mas doer libertava. Inspirava coragem para seguir adiante, semeando novas sementes a serem brotadas em diferentes cores. Cores mais suas. Mais cheias de vida vinda do útero que descamava as suas esquisitices de ser mulher. Sentia o cheiro da chuva. Da vida que precisava ser dissipada em céu aberto, e ganhar o mundo sem amarras.

Ela lambeu a chuva de pingos grossos. As poças de lama ganharam volume, e o intenso marrom abraçava seus pés descalços. Inundou-se de terra molhada. Terra fértil, capaz de fecundar as sementes de novos tempos. Tempos cíclicos de novos velhos eus.

Sentiu a terra penetrando-lhe os orifícios. Sua textura densa invadia-lhe os espaços vazios. Escorregava pelos canais abertos e perseguia seu ventre. Terra quente que lhe corria com a força das entranhas, sem pedir licença. Com a força da vida que pulsava e pedia vida-vivida. 

O movimento era de intenso feminino. Ela sentiu prazer. Um prazer doce e próspero, capaz de elevá-la a outros níveis de existência. Uma existência sua, compartilhada com a terra que fincava seus pés no chão.  Com o ar que lhe acariciava o cabelo. Com tudo que sentia rondar-lhe sem saber dar nome.

Sentiu-se mulher feita de terra. E seguiu desabrochando como flor estranha.

2 comentários:

  1. Que você desabroche mil e uma vezes para ser a flor estanha chamada ser autêntica. Beijos nas raízes. Kali.

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  2. e eu viajando ser a terra, penetrando os ourifícios. booom.

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