quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Raízes salientes


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos 

Naquele dia ela andava por caminho trivial. Um dia sem mais nem menos, onde ela reverberava as intensidades de dias recentes. Dias vividos em emoções que se arrastavam por baixo da pele, rasgando o corpo em arrepios e sensações quentes.

Andava pelo cotidiano vazio de acontecimentos, para o almoço feijão com arroz que lhe mataria a fome do momento. As lembranças das intensidades falavam-lhe com o corpo, saindo de vez em quando em rompantes bruscos, que tomavam seu pensamento e extravasavam para lhe percorrer os pêlos. Pouco olhava o hoje, que se mostrava desinteressante e corriqueiro como um dia sem pertencer à memória. Seguia.

Foi quando, de repente, viu algo que lhe paralisou os passos. Lá estava ela! Uma grande árvore de raízes salientes, raízes imensas, que rompiam a terra com a força das profundezas. Raízes que se multiplicavam, que tomavam o chão e atropelavam o que estivesse diante delas. Raízes de forças ocultas, que se movimentavam rasteiras e alteravam a superfície em relevos. Que modificavam as paisagens planas do cerrado, em marcha que não se interrompe. Apenas se contempla, com a planta dos pés a tocar a vibração do que existe por baixo de.    

Contemplou. As suas pernas imobilizaram-se diante do semblante majestoso da árvore-deusa. Não conseguia ver seu fim nem seu começo. Ela era grande e silenciosa como a vida. Vinha do ventre aterrado, e seguia até onde pudesse encontrar espaço – ilimitada de formas e tamanhos. Crescia livre, sem moldes prontos, cada galho rompendo para um lado, cada folha caindo no seu momento. Pensou no seu setembro de profundezas. E sorriu ao sentir-se um pouco árvore de mistérios.

Tocou alguns pedaços marrons que lhe apareciam perto dos pés. Pedaços vivos de algo submerso, capaz de fincar toda a estrutura de copas verdes. Pedaços que se nutriam da terra, que sugavam e dissipavam vida, que se embrenhavam por onde ninguém mais podia ver. Mas que estavam ali, no entanto, mostrando ao mundo a saliência das entranhas. Fornecendo pistas dos caminhos escondidos aos olhos de visão.

Percebeu suas próprias raízes revirando-lhe o estômago. E soube que haveria de percorrê-las para chegar ao fim deste ano denso, que lhe obrigava a escavar a terra com os dedos, em busca dos próprios vestígios. Seguiu para o almoço não mais trivial. Saboreou a comida com gosto de alimento de raiz.

Sentiu suas vertigens costumeiras, cheias de desafios. Precisava enfrentar esse caminho de coisas não reveladas. Perseguir o buraco dos sintomas que a devastavam com impulso de vento. Seguir as pistas vistas para encontrar o que se escondia por entre vísceras e espaços ocultos. Entrar em harmonia com a sua força motriz.

Colocou a cabeça no chão de terra. Sim, ela era um pouco árvore. E um tanto de mistérios.
  

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