segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Pietá


por: Kali
desenho: Ana Vasconcellos

Era o tempo dos milagres, das curas, do reconhecimento. Poderia viver assim por toda eternidade, desfrutando do gosto doce de saber usar os cristais interiores. Esqueceu, porém, que a grande missão estava no aprendizado. Não era o topo da montanha que fazia o alpinista. O troféu é a escalada.

Foi capturada pela força negra das entranhas. Chegou o tempo das estacadas na mão, a espinhante coroa de questionamentos, dos chicotes no corpo. Chegou o tempo de sangrar um líquido vermelho e dolorido, para sentir-se encarnada.

Foi preciso morrer para adentrar nos infernos. Foi preciso doer para compreender a humanidade. E no mergulho cego no abismo, perder-se parece inevitável. Tamanha solidão dos dias sem luz, dos quadros sem cores, da vida sem sentido no labirinto de espelhos.

Ela procurava como um inseto desesperado pelo brilho artificial. Esqueceu de olhar para a luz que tremeluzia dentro de si. Com rosto colado no espelho, exibindo deformada figura forjada pelo calor da ofegante respiração, ela fechou os olhos e deixou despencar no chão seu grande corpo de guerreira.

Encolheu-se buscando o calor de si mesma e encontrou o vento glacial de seus pensamentos. Sentiu o gerar no seu ventre. Algo que pulsava em um ritmo alucinante. Viu o mundo girar. Sim, estava na hora de parir. Tirou forças de onde não tinha, abraçou o vaso, afundou sua pesada cabeça. Sentiu o cheiro de fezes. Seu estômago revirou e ela despejou para fora aquilo que não lhe pertencia. Fétido cheiro das entranhas doentes. Negro, com pedaços de alimentos impróprios, fatias de histórias não vividas, partes alheias.

Despencava no chão, encolhia-se, sentia o vento glacial e novamente mergulhava nos odores apodrecidos de si mesma. Ela pariu suas sombras mais obscuras e pensava estar sozinha.

Quando por fim derramou a última gota de suas negatividades, soltou-se no abismo pensando ser o fim. Esperou pela queda com os olhos apertados e sentiu o abraço pequeno e feminino de sua mãe. Abriu os olhos e permitiu-se morrer. Os olhos maternos não espelhavam dor, medo ou ressentimento. Era piedade que via. O amor incondicional que buscara por toda a vida. O olhar que lhe foi negado ao nascer, mas, que, por fim, lá estava estampado na partida.

Com as costelas expostas e massageadas, ela sentiu seu frágil coração. Frágil e forte, como ela mesmo o é. Doce e amarga, como ela mesmo se provou. Escura e clara, como ela mesma se descobriu.

Chegou o tempo de morrer no colo da mãe, com um sorriso leve de quem pode voltar para o pai. Na derradeira despedida, o amor pulsava, não mais para fora, agora para dentro, acarinhando as entranhas. Não mais tão estranhas agora.

E no toque de si mesma ela cindiu-se em luz e alcançou os céus.

Um comentário:

  1. Que linda forma de renascer em si mesma Kali!
    De dispersar-se a partir das entranhas que precisam ganhar o mundo com vida própria. Lindo texto, Gaia

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