quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Abismos

Por Silvia Badim/Gaia
Imagem de Ana Vasconcellos


Lá estava ela, pairando sob o abismo.

Andava em volta de si mesma, olhando o imenso buraco aberto sob as crateras de sentir e de pensar. Abismo negro de profundidade não revelada. Rachava-se.

De um lado pisava o sentimento imenso, que sentia arrepiar-lhe as entranhas. Sentimento disforme, irradiador, que a devastava como a seca que comia o verde. Do outro lado, pisava a terra de seus esquemas racionais. Milhões de explicações teóricas sobre os sentires que lhe invadiam a alma, e escorregavam para todos aqueles que estavam ao seu redor. Conjunturas, quadros, rotas explicativas, sensatez. Sua mente fervilhava tentando encontrar racionalidades racionalizantes. Tentando amordaçar o sentir vivo que corroia certezas e traços que definira com tanto esmero.  

As suas estruturas pegaram fogo. E ela corria com baldes d água, atrapalhada pela pressa de preservar sua solidez. Quase desesperada diante das chamas, tentava salvar alguma coisa que permanecesse em pé. Esfregou os olhos, tentando enxergar o que restava sob o cinza chumbo da fumaça. Mas não reconhecia os vestígios sobreviventes. Estava permeada por olhos de abismo.  

Lá estava ela, um pé de cada lado, cindida sob o negro sem fundo. O fogo dilatava as crateras, aumentava seu diâmetro, esticando suas pernas ao limite. Pernas abertas por onde sangravam contradições. Sentia o limite dos paradoxos, a abertura em que vivia suas confusões mentais. Perdia o equilíbrio para as vertigens de se estar à beira de.

Quase rasgada, suas pernas doíam, imóveis em distância. Paralisadas, gélidas. Precisava doer. Alguma coisa precisava doer. Precisa sentir fisicamente o limite das pernas estiradas. A dor cortante de não conseguir fincar os dois pés no mesmo lado. Era tempo de revelar a dor escondida nos seus fragmentos entre abismos.

Quem era ela mesmo?

3 comentários:

  1. Quando chega o fogo, quando não reconhecemos quem sonos, chegou o momento de renascer. Como o fogo do cerrado que mata para nascer verde, no tempo das chuvas.

    Lindo texto

    Kali

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  2. o abismo sempre foi uma imagem que me acompanhou, gosto muito.
    eu leio e quero te contar como senti, mas fico muda...

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  3. lindo lindo lindo
    intenso poético e tão real!

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