quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fragmentos de vida líquida

Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos





Sentiu o cheiro de vida líquida.

Inebriada, seguiu a rota que se abria pela mata. Coração guia, quase sem consciência do terreno por onde pisava seus anseios sem nome. Sentia apenas a intuição aguçar-lhe as bússolas interiores, em busca de alento. Em busca de elevar-se pelas mãos da natureza.

A mata se abriu em água. Floriu em quedas que rompiam os arredores em suspiros de cascatas. Fazia frio. E ela às voltas com a sua resistência encolhida de bicho ferido. Tinha dor, e lambia a ferida exposta em local secreto - com a língua a tocar o gosto ocre do sangue parado. Sua toca era feita de medos e de ousadias.

Contemplou a força que corria diante de seus olhos. E deixou-se vencer, num só impulso de voracidade. Curvou-se às águas que saltavam vibrantes da cachoeira, impulsionadas pelo volume das chuvas que resolveram desabar sobre o cerrado. Águas bruscas do mês de outubro.

Não se lembrava exatamente como chegara ali. Lembrava-se apenas de estar deitada, nua, sob a água corrente. Cabeça baixa, a reverenciar a mãe deusa que se escondia no manto cristalino que lhe inundava a alma. Líquido gelado sob o corpo quente. Sentia o descontrole das pernas bambas, e ria sozinha de sua pequena estrutura lavada pelas águas. Finalmente ela estava ali.

O gelado penetrava-lhe os ossos, escurecia-lhe a vista, ensurdecia. A correnteza era capaz de lhe levar para outras paragens, sem que ela pudesse oferecer controle. Sim, ela estava vencida - e estar vencida era bom. Rendia-se ao inusitado que lhe flutuava sem trégua. Ela tremia. E o medo escorria pela pele arrepiada, a se misturar com o fluxo que descia rio abaixo.

Para onde ia? Parou por um momento, acordada de susto. Agarrou os galhos de árvore, e fincou os pés na pedra que lhe servia de abrigo. Seus dedos misturaram-se com as folhas verdes que se nutriam de vida liquida. A água não tinha descanso. Fluía livre, próspera, a lhe contar segredos de beira de rio. Sim, ela não sabia. E não saber era bom. Desconhecidamente bom. Era liberdade de força desmedida.

Sentiu sede de grandes goles. Embebedou-se. Ela queria a paz das águas livres. Águas que lavariam os vestígios da métrica de amor e dor, tão arraigada aos seus versos. Que a fariam perseguir outras rimas de amor, mais doces e simples como o canto da corredeira. Desejou com o peito aberto, os olhos brilhando, o sorriso amplo de sinceridades.

Ela então se aqueceu – enrolada em leveza e tranqüilidade. A correnteza ainda percorria-lhe o corpo. Reverberava. E ela queria continuar ali, fitando as margens e sentindo a força liquida lhe penetrar as entranhas. Admirando o fluxo da vida que lhe carregava com generosidade de incógnitas. 

Lembrou de uma frase lida que incorporou aos seus cadernos de poética. “Perto de muita água tudo é feliz”. Sim senhor. Ela tinha sede de muita água.  

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Baile Kali


por: Kali
desenho: Ana

Baile Kali, apenas rodopie sobre mim. Pode aposentar os sapatos de salto, as sapatilhas que esmagam seus dedos finos ou as botas militares que te pesam as pernas. Apenas baile sobre mim. Deixe que eu te penetre pelos dedos e acaricie suas raízes.

Baile, Kali, entre em mim, com seus pés ligeiros para que alcance os céus. E quando cansar, deite sobre mim. Quero enbalar sua menina ferida para que nunca se esqueças da melodae. Entregue-se aos meus braços quentes, deixe que eu lamba as feridas com minhas lágrimas e as segue com meu vento. Quero iluminá-la com o dourado sol do meu cabelo.

Pare de subir em altas montanhas e despecar para descobrir que não tem asas com a face sangrenta no chão. Nâo se debata mais, Kali. Apenas baile. Baile até que cansar, baile até morrer e assim abrirei meus braços para te receber. Mas baile, Kali. Apenas baile sobre mim.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Purulências



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

Ela andava novamente envolta com as suas infecções do corpo. Explosões que lhe apareciam em forma de feridas. Inflamações, pus, tonturas, sensações de dormência que lhe rondavam os dias. Febres, dores, catarros, coisas purulentas que lhe saiam pelos mais diversos buracos. Cansaços. Erupções que lhe chegavam de repente, lá do fundo das entranhas que buscavam renovar-se. Que ansiavam por expelir as crostas que não mais lhe serviam.
E havia muito para ser expelido. Desde pequena ela acumulava, em diversas camadas, seus processos internos de não saber. Suas várias perplexidades e solidões, que ela não sabia como conjugar com o mundo lá fora. Que ela não sabia sequer dar nome. Coisas mudas que sopravam intensidades latentes, a lhe perfurar a alma criança.
Ela era menina, e não entendia tantas coisas. Não entendia, por exemplo, porque não se deixava embalar pelo sono. Porque não gostava da noite, e porque chorava sempre que as pessoas iam embora. Porque o dia acabava, e porque ela se agarrava às descobertas miúdas do cotidiano da infância. Porque via coisas que ninguém mais via. Até hoje não entendia.
Lembrou-se das vozes imaginárias que eram presentes na noite escura. Das falas que lhe chegavam aos ouvidos, das imagens que pulavam pelo quarto na madrugada - a assustar a pequena menina de olhos negros e despertos. Ela corria para a cama da mãe, que lhe recebia sempre com o abraço quente. Abraço que lhe sufocava os pulmões com tosse. Que lhe cobria de cuidados ansiosos de super proteção.  
A mãe também tinha medo. E um grande amor exagerado. Também era menina que queria colo, que precisava de abrigo. Que se sentia acolhida toda vez que protegia sua cria em perigo. Toda vez que sentia o amor incondicional aguçar-lhe as veias femininas, e suprir-lhe as carências de outros lugares. A filha era o canal permitido, e mãe saciava-se nas noites da menina insone.
Ela gostava de ter o espaço grande onde podia se esconder sempre que tinha dor ou medo. Refugiou-se nas asas acolhedoras, que lhe contavam que tudo estava resolvido dentro daquele espaço macio. Mentiras verdadeiras da mãe que transbordava, sem começo nem fim. E ali ela se aninhou, por anos e anos. Febres e febres. Doenças e mais doenças.  
...
O tempo esticou a menina grande, que cresceu para além do espaço permitido. As asas comprimiram as suas estruturas. Faltou-lhe o ar. Ela queria abrir as janelas, escancarar as portas. Correr para longe do portão da velha casa, respirando o peito aberto e o corpo pululante. Corpo novo de anseios novos. Novos e velhos medos. Novas boas coragens. E ela correu.  
A mãe sempre temeu as asas vazias. Tinha tanto medo, que fechou os olhos para não ver a menina grande. Para não perceber as pernas longas que não cabiam mais nos seus braços. Gritava desacertos de dor - de não aceitar o que não podia conter. E ao ver a menina correr para longe, desajeitou-se em mágoa descontrolada.
A menina esticada deixou a lembrança das asas enterrada no jardim da casa antiga. E cresceu grande, diluindo-se no mundo azul maduro. Foi atrás do seu caminho, sem trajetos definidos. A mãe a observava com controle remoto. E enviava-lhe, semanalmente, as faturas das contas atrasadas. Não faltava uma semana. As contas chegavam, cheias de números e novas cifras.
Ela não gostava de ver a mãe gritar. De vê-la querer juntar o tempo esvaído pelos buracos da fechadura. De assistir as suas lágrimas secas pularem sem motivo palpável. De tocar a sua dor de olheiras fundas, escondidas sob a maquiagem permanente. Ela corria. Longe e mais longe. Longe-perto-longe.  
Sentia frio nas noites de febre. Buscava o colo quente que não mais estava lá. Sentia-se menina no escuro do quarto de vozes e vultos, sem poder correr para a cama da mãe. Não tinha mais cama. Ela era dona das próprias rédeas. Mulher bem resolvida na luz do dia. Mas seus olhos ainda escondiam o medo do apagar das luzes.
A vida seguia, e ela continuava a expelir suas inflamações de desacertos. Transitava por dentro e por fora, tentando conjugar-se inteira, de verdade, buscando um caminho que um dia lhe faria sentido.
Foi quando, de repente, sentiu uma súbita dor que vinha da garganta. Abriu a boca em frente ao espelho, e fitou suas grandes amídalas. Bem no canto direito, lá estava ela: uma enorme cratera de pus. Amarela viva, incrustada no tecido vermelho. Uma única cratera redonda, a enfeitar seu dia interior.
Ficou parada, contemplando a cena que via em micro sistema. Foi capaz de enxergar-se inteira naquele pequeno fragmento de si. A boca amorteceu, e ela cabia toda ali dentro - perdida no fluxo da respiração que passava canal abaixo. No roçar da língua áspera, que deslizava pela memória dos dentes.
Passaram-se dias, e ela a cuidar da purulência descoberta. Remédios, gargarejos, e a boca aberta. Não conseguia parar de olhar o ponto amarelo, que resistia às suas investidas de combate. Afeiçoou-se à cratera órfã, que expelia com vigor vestígios indigestos de suas profundezas.
Doía. E ela entendeu-se de um jeito estranho. Precisava desapegar-se da menina escondida sob as asas abertas. Da sensação inalcançável de segurança. Da imagem mitológica da mulher grande que viria resolver-lhe os dias de desconsolo.
Precisava entender-se solta, fluida, sozinha, como de fato era. Sem medo de enfrentar os revezes que vinham de dentro. De enfrentar de frente a sua fragilidade, seus pedaços purulentos, suas questões que jamais se resolveriam. Seus tantos outros medos que pulavam amarelos como bolas de pus. 
 Aceitou-se. E a infecção cedeu.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conto sem ponto


Por: Kali
Imagem: Ana

Ela seguiu o cheiro de carne no ar. E do sangue que pingava no chão, com seus pés descalços começou a pintar o jardim de sua vida. Desenhou cenas tecidas com areias de uma duna efêmera.

Parou  à beira do abismo e sentiu a deliciosa vontade de saltar. Chegara a hora breve de partir? Ela só queria saborear o vento, sentir seu corpo se entregar ao vazio, sem pensar se a queda poderá causar-lhe ferimentos profundos.

Mas o momento que antecede a vontade de saltar a inebria fazendo-a esquecer tudo o que pintou até ali chegar.

Seduzida pelo cheiro do vento produzido por uma nuca que nem me lembrava mais existir, mas que de súbito apareceu, por obra do destino, a causar-lhe um mal/bem inexplicável, daqueles que fazem a gente imaginar que somos pássaros.

Por cima da neblina densa que impede de saber o tamanho da queda, ela acariciou as nuvens, passando cada molécula de água por todo seu corpo, deixando escorrer uma gota pelas por suas intimidades.
Gota que penetra, fecunda poemas esquecidos na biblioteca erótica. O quarto fora aberto e Kali saiu nua seduzindo as tropas, fazendo esquecer as guerras.Girando em volta da fogueira, em uma dança profana e onírica desenhou traços da sua vida, com sangue, pele, cheiro e instinto, desencontrando o ponto final para este conto. E ponto.

domingo, 17 de outubro de 2010

salto.


 Por Ana

Se minh´alma esvair-se sob águas revoltas
Como no escuro, estrela evanescente
Em alvas teias orgânicas me enovelo
Sou um quarto de lua crescente.

Não há espaço
a linha do horizonte não alcança o crepúsculo
Do corpo em brasa sou febre
Da areia que escalda, molusco.

Então subo ao alto da construção
Vomito minha cólera aos deuses do vento
Atiro ao vento minha vida, em vão.

Na calçada, poça de sangue espessa
os braços, imóveis em necrose
e no meio da rua, um pedaço de cabeça.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Flor estranha


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos




Havia chegado a primavera.

As primeiras chuvas lavaram a terra com a força das águas represadas. Águas esperadas durante tantos meses, ansiadas no tempo seco que a queimara em contradições. Havia chegado o momento de respirar o alento da umidade. O alívio do líquido gelado sob a cabeça quente. Respirou.

A terra perfumada pelas águas desabrochava em desconhecidas flores no jardim. Era tempo de flor. Tempo de suavizar a aspereza, de contemplar a beleza ímpar do que nasce da terra que atravessou as rachaduras do sol.

Ela havia chorado. Havia enfrentando algumas das suas securas de outros tempos. Ousou ser ela, despida de seus artifícios de fuga. Ela era flor estranha. Genuinamente cultivada por medos e desacertos de intimidade. Flor que cresceu em meio a outros elementos, invadida por diferentes feições que faziam dela o que ela era hoje.

Enfrentava o espelho, em pêlos nus. O hoje era um velho conhecido, escondido embaixo de diferentes panos que se acoplaram aos seus quadris. Que camuflaram um pouco do que ela, desajeitadamente, não conseguia ser. Mas ela era.

Estava no seu exílio. Tocando a sua profunda e necessária solidão. Começou a desbravar aquilo que doía, sem se esconder nas relações a habitavam como casa cheia. O hoje era um novo ciclo, que pairava sob o vazio de quartos e corredores. Era difícil enfrentar a mirada solitária da própria face. O silêncio de ser sozinha. De ser aquilo que se é.

Doía. Mas doer libertava. Inspirava coragem para seguir adiante, semeando novas sementes a serem brotadas em diferentes cores. Cores mais suas. Mais cheias de vida vinda do útero que descamava as suas esquisitices de ser mulher. Sentia o cheiro da chuva. Da vida que precisava ser dissipada em céu aberto, e ganhar o mundo sem amarras.

Ela lambeu a chuva de pingos grossos. As poças de lama ganharam volume, e o intenso marrom abraçava seus pés descalços. Inundou-se de terra molhada. Terra fértil, capaz de fecundar as sementes de novos tempos. Tempos cíclicos de novos velhos eus.

Sentiu a terra penetrando-lhe os orifícios. Sua textura densa invadia-lhe os espaços vazios. Escorregava pelos canais abertos e perseguia seu ventre. Terra quente que lhe corria com a força das entranhas, sem pedir licença. Com a força da vida que pulsava e pedia vida-vivida. 

O movimento era de intenso feminino. Ela sentiu prazer. Um prazer doce e próspero, capaz de elevá-la a outros níveis de existência. Uma existência sua, compartilhada com a terra que fincava seus pés no chão.  Com o ar que lhe acariciava o cabelo. Com tudo que sentia rondar-lhe sem saber dar nome.

Sentiu-se mulher feita de terra. E seguiu desabrochando como flor estranha.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Musica para Kali

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

Cansou-se de dividir-se pelo mundo. Buscou em cada um, o pedaço de si na tentativa de remontar-se. Visitou fantasmas do umbral, velhas almas que só habitavam cartas amareladas, memórias antigas em letras de amor.

Faltava-lhe ainda uma parte sem nome ou memória que ela não conseguia acessar. Uma peça feita de desejos, impulsos, sonhos e pesadelos. Um fragmento do tempo dos choros e peitos. Um pedaço sem palavras ou mente. Um não sei que apenas de corpo e sentimento.

Adentrou no labirinto escuro de suas entranhas  tocadas pela nova mãe. Passou pela mente e foi além, no lugar onde palavras não servem, refúgio de peixes cegos e pássaros surdos. Andou temerosa e escutou uma valsa antiga feita para Elise, mas que dizia tanto sobre ela. Ouviu a música e começou a entregar-se ao fluxo das lágrimas que despencavam de seus olhos míopes. E no mar de sentimentos sem nomes viu sua mãe sentada ao piano, confusa e perdida, manifestando sua infantilidade do terceiro setênio em forma de melodia. Uma música que exprimia seu medo de nascer mãe. Doce, profunda, leve e triste, como ela o é.

Em cada nota daquela cena, entendeu um pouco de si. Descobriu o quanto aquela melodia regia com notas e dança dos dedos o ritmo da sua vida. Vestiu-se de bailarina de cabaré entregou-se de braços abertos ao chão duro que feria seu coração. Sentiu medo de amar novamente aquela mãe pequena, de corpo de costelas. Sentiu o medo de não saber dançar a melodia. Face a face com sua tristeza, dançou com ela, sem ritmo, sem compasso, de rostos colados em união impossível.

No pulsar do coração em uníssono encontrou a percussão de sua música. Ela viu ao longe, entre lágrimas, sangue e escuridão, a peça que lhe faltava.

No corpo colado ao seu, nas mãos que afagavam os cabelos com cachos, ela parou de debater-se para permitir-se apaziguar. Sentou com medo da dor de suas feridas velhas e purulentas. Deixou-se tocar a face sem rosnar. As mãos maternas por cima das cascas que ela mesma causou, faziam reluzir a consciência perdida.

Ela saiu do quarto, ainda sem encaixar a peça. Mas certa de que agora poderá se completar.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

(fluidos)


Por Ana

Era uma mulher com viço
Carregava entre as pernas
um líquido que escorria
Não se intimidava
Apertava a mão contra a pélvis
Fechava os olhos
e sentia a si mesma por entre os dedos
Gostava.
Era quente desde que podia se recordar
Tinha o viço do sangue
do gozo
Quando a penetrava
pedia que se deixasse dentro dela
Deixava
Ela o retinha enquanto podia
depois era queda
Ajoelhava e queimava
escorria de si e em si
Caía e adormecia
Enquanto isso sua alma vagava na correnteza de fluidos  
que de tempos em tempos faziam-na  sentir-se
ainda mais mulher.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Raízes salientes


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos 

Naquele dia ela andava por caminho trivial. Um dia sem mais nem menos, onde ela reverberava as intensidades de dias recentes. Dias vividos em emoções que se arrastavam por baixo da pele, rasgando o corpo em arrepios e sensações quentes.

Andava pelo cotidiano vazio de acontecimentos, para o almoço feijão com arroz que lhe mataria a fome do momento. As lembranças das intensidades falavam-lhe com o corpo, saindo de vez em quando em rompantes bruscos, que tomavam seu pensamento e extravasavam para lhe percorrer os pêlos. Pouco olhava o hoje, que se mostrava desinteressante e corriqueiro como um dia sem pertencer à memória. Seguia.

Foi quando, de repente, viu algo que lhe paralisou os passos. Lá estava ela! Uma grande árvore de raízes salientes, raízes imensas, que rompiam a terra com a força das profundezas. Raízes que se multiplicavam, que tomavam o chão e atropelavam o que estivesse diante delas. Raízes de forças ocultas, que se movimentavam rasteiras e alteravam a superfície em relevos. Que modificavam as paisagens planas do cerrado, em marcha que não se interrompe. Apenas se contempla, com a planta dos pés a tocar a vibração do que existe por baixo de.    

Contemplou. As suas pernas imobilizaram-se diante do semblante majestoso da árvore-deusa. Não conseguia ver seu fim nem seu começo. Ela era grande e silenciosa como a vida. Vinha do ventre aterrado, e seguia até onde pudesse encontrar espaço – ilimitada de formas e tamanhos. Crescia livre, sem moldes prontos, cada galho rompendo para um lado, cada folha caindo no seu momento. Pensou no seu setembro de profundezas. E sorriu ao sentir-se um pouco árvore de mistérios.

Tocou alguns pedaços marrons que lhe apareciam perto dos pés. Pedaços vivos de algo submerso, capaz de fincar toda a estrutura de copas verdes. Pedaços que se nutriam da terra, que sugavam e dissipavam vida, que se embrenhavam por onde ninguém mais podia ver. Mas que estavam ali, no entanto, mostrando ao mundo a saliência das entranhas. Fornecendo pistas dos caminhos escondidos aos olhos de visão.

Percebeu suas próprias raízes revirando-lhe o estômago. E soube que haveria de percorrê-las para chegar ao fim deste ano denso, que lhe obrigava a escavar a terra com os dedos, em busca dos próprios vestígios. Seguiu para o almoço não mais trivial. Saboreou a comida com gosto de alimento de raiz.

Sentiu suas vertigens costumeiras, cheias de desafios. Precisava enfrentar esse caminho de coisas não reveladas. Perseguir o buraco dos sintomas que a devastavam com impulso de vento. Seguir as pistas vistas para encontrar o que se escondia por entre vísceras e espaços ocultos. Entrar em harmonia com a sua força motriz.

Colocou a cabeça no chão de terra. Sim, ela era um pouco árvore. E um tanto de mistérios.
  

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Espinhas

por: Kali
Desenho Ana Vasconcellos

Era ela e seu bailar. Na sala vazia vinha e ia como quem não vai chegar. Estava no quarto vazio olhando o reflexo distorcido no espelho. Sentia-se bela com sua face alva, seus seios firmes, sua boca vermelha. Aproximava-se e uma pequena feridinha purulenta surgia em sua mente. Ela espremia como se pudesse colocar para fora todos os pensamentos infeccionados .Ouvia a voz de sua mãe a gritar:

- Você é gorda e feia. Ninguém vai gostar de você.

Ela se espremia até ver o sangue brotar em sua face, até sua obra de arte estar manchada pela feiúra que lhe ensinaram a vestir. A maquiagem cobria a ferida transformando-a na eterna atriz das novelas dos anos 80. Exagerada, dram[atica, descontextualizada e irreal.

Ela pintava da cor da pele a ferida escura com casca e pus que ela mesma criou. E chorava baixinho no canto do quarto lembrando do tempo que era bela. Todos os dias ela prometia não se ferir. Mas não conseguia. Era como se a voz se calasse apenas com as marchas funebres, manchas e ferimentos. É como se a dor só cessasse com a cena repetida. É como tudo só fizesse sentido se ela atuasse seguindo o sopro do ponto.

Em um ato único, um dia ela escutou uma outra voz, doce como uma canção de ninar. Melodia de menino feliz e brilhante que lhe soprava no ouvido as verdades que nunca ouvira.

Ela se sentiu bela e plena. Ela se olhou no espelho, viu as feridas e entrou em cena. De cara limpa, coração aperto, seio desnudo e corpo descoberto. Ela era Ela. Inteira em suas luzes e sombras. De que vale riscar a face da moeda? No cara e coroa encontrou o ponto de equilíbrio da moeda, que naquele bailar, rápido em translação, transformava-se em esferas, luzes e cometas. Na união das faces, encontrou o ponto em que não se é tudo ou nada. Apenas se é.

sábado, 2 de outubro de 2010

orgânica morte


por Ana

Em minha parte de ser orgânico
tenho um jazigo rubro de vísceras cintilantes
Retumbante em meu estômago gás carbônico
Em meus olhos batalha a morte relutante.

Por alguns instantes paro a respiração
O sangue lentamente desanda a latejar
Tento, tento - esquento - combustão.
Brado aos deuses do fim que o fim há de chegar.

E se por acaso em meu ventre descansa
Da guerra e da foice, demônio alado
Dilacero-me de lâminas afiadas
E desperto à noite com o filho abortado.