quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Purulências



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

Ela andava novamente envolta com as suas infecções do corpo. Explosões que lhe apareciam em forma de feridas. Inflamações, pus, tonturas, sensações de dormência que lhe rondavam os dias. Febres, dores, catarros, coisas purulentas que lhe saiam pelos mais diversos buracos. Cansaços. Erupções que lhe chegavam de repente, lá do fundo das entranhas que buscavam renovar-se. Que ansiavam por expelir as crostas que não mais lhe serviam.
E havia muito para ser expelido. Desde pequena ela acumulava, em diversas camadas, seus processos internos de não saber. Suas várias perplexidades e solidões, que ela não sabia como conjugar com o mundo lá fora. Que ela não sabia sequer dar nome. Coisas mudas que sopravam intensidades latentes, a lhe perfurar a alma criança.
Ela era menina, e não entendia tantas coisas. Não entendia, por exemplo, porque não se deixava embalar pelo sono. Porque não gostava da noite, e porque chorava sempre que as pessoas iam embora. Porque o dia acabava, e porque ela se agarrava às descobertas miúdas do cotidiano da infância. Porque via coisas que ninguém mais via. Até hoje não entendia.
Lembrou-se das vozes imaginárias que eram presentes na noite escura. Das falas que lhe chegavam aos ouvidos, das imagens que pulavam pelo quarto na madrugada - a assustar a pequena menina de olhos negros e despertos. Ela corria para a cama da mãe, que lhe recebia sempre com o abraço quente. Abraço que lhe sufocava os pulmões com tosse. Que lhe cobria de cuidados ansiosos de super proteção.  
A mãe também tinha medo. E um grande amor exagerado. Também era menina que queria colo, que precisava de abrigo. Que se sentia acolhida toda vez que protegia sua cria em perigo. Toda vez que sentia o amor incondicional aguçar-lhe as veias femininas, e suprir-lhe as carências de outros lugares. A filha era o canal permitido, e mãe saciava-se nas noites da menina insone.
Ela gostava de ter o espaço grande onde podia se esconder sempre que tinha dor ou medo. Refugiou-se nas asas acolhedoras, que lhe contavam que tudo estava resolvido dentro daquele espaço macio. Mentiras verdadeiras da mãe que transbordava, sem começo nem fim. E ali ela se aninhou, por anos e anos. Febres e febres. Doenças e mais doenças.  
...
O tempo esticou a menina grande, que cresceu para além do espaço permitido. As asas comprimiram as suas estruturas. Faltou-lhe o ar. Ela queria abrir as janelas, escancarar as portas. Correr para longe do portão da velha casa, respirando o peito aberto e o corpo pululante. Corpo novo de anseios novos. Novos e velhos medos. Novas boas coragens. E ela correu.  
A mãe sempre temeu as asas vazias. Tinha tanto medo, que fechou os olhos para não ver a menina grande. Para não perceber as pernas longas que não cabiam mais nos seus braços. Gritava desacertos de dor - de não aceitar o que não podia conter. E ao ver a menina correr para longe, desajeitou-se em mágoa descontrolada.
A menina esticada deixou a lembrança das asas enterrada no jardim da casa antiga. E cresceu grande, diluindo-se no mundo azul maduro. Foi atrás do seu caminho, sem trajetos definidos. A mãe a observava com controle remoto. E enviava-lhe, semanalmente, as faturas das contas atrasadas. Não faltava uma semana. As contas chegavam, cheias de números e novas cifras.
Ela não gostava de ver a mãe gritar. De vê-la querer juntar o tempo esvaído pelos buracos da fechadura. De assistir as suas lágrimas secas pularem sem motivo palpável. De tocar a sua dor de olheiras fundas, escondidas sob a maquiagem permanente. Ela corria. Longe e mais longe. Longe-perto-longe.  
Sentia frio nas noites de febre. Buscava o colo quente que não mais estava lá. Sentia-se menina no escuro do quarto de vozes e vultos, sem poder correr para a cama da mãe. Não tinha mais cama. Ela era dona das próprias rédeas. Mulher bem resolvida na luz do dia. Mas seus olhos ainda escondiam o medo do apagar das luzes.
A vida seguia, e ela continuava a expelir suas inflamações de desacertos. Transitava por dentro e por fora, tentando conjugar-se inteira, de verdade, buscando um caminho que um dia lhe faria sentido.
Foi quando, de repente, sentiu uma súbita dor que vinha da garganta. Abriu a boca em frente ao espelho, e fitou suas grandes amídalas. Bem no canto direito, lá estava ela: uma enorme cratera de pus. Amarela viva, incrustada no tecido vermelho. Uma única cratera redonda, a enfeitar seu dia interior.
Ficou parada, contemplando a cena que via em micro sistema. Foi capaz de enxergar-se inteira naquele pequeno fragmento de si. A boca amorteceu, e ela cabia toda ali dentro - perdida no fluxo da respiração que passava canal abaixo. No roçar da língua áspera, que deslizava pela memória dos dentes.
Passaram-se dias, e ela a cuidar da purulência descoberta. Remédios, gargarejos, e a boca aberta. Não conseguia parar de olhar o ponto amarelo, que resistia às suas investidas de combate. Afeiçoou-se à cratera órfã, que expelia com vigor vestígios indigestos de suas profundezas.
Doía. E ela entendeu-se de um jeito estranho. Precisava desapegar-se da menina escondida sob as asas abertas. Da sensação inalcançável de segurança. Da imagem mitológica da mulher grande que viria resolver-lhe os dias de desconsolo.
Precisava entender-se solta, fluida, sozinha, como de fato era. Sem medo de enfrentar os revezes que vinham de dentro. De enfrentar de frente a sua fragilidade, seus pedaços purulentos, suas questões que jamais se resolveriam. Seus tantos outros medos que pulavam amarelos como bolas de pus. 
 Aceitou-se. E a infecção cedeu.

2 comentários:

  1. Eu poderia ter escrito esse texto. Mas ao invés da proteção, minha armadura foi a solidão igualmente sufocante. Cada dia que te conheço, mais me identifico. Beijos Kali.

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  2. Lindo texto!!!
    Quanto mais leio, mais admiro!
    Bj
    Tia Lena

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