Por: Kali
Imagem: Ana Vasconcelos
Mal raiava o dia ela corria para frente do espelho para cobrir as imperfeições. A base rosada, o pó, o corretivo. Mil artefatos para esconder suas obscuridades cutâneas, purulências da alma.
Olhos tristonhos ganhavam a ousadia necessária para as luzes artificiais com marcados traços negros. Blush para conferir aquele ar saudável. A personagem estava pronta para atuar nos palcos da vida, retocando sua fantasia em cada pausa.
Diante do espelho mil pensamentos aniquilantes. Os olhos grandes e profundos a desvendarem cravos, defeitos inexistentes por toda parte. Na tentativa de calá-los uma perfumada cobertura epitelial a colorir uma espessa capa de gordura.
Numa manha qualquer esqueceu a maquiagem. Pendurou no armário dez quilos de sua roupa gordurosa. Agora enfrentaria o mundo sem sua armadura, com músculos a mostra, ossos expostos. Era ela em sua nudez de alma. Seus cabelos outrora lisos voltavam a enrolar em pensamentos curvos, orgânicos.
Ela se olhava no espelho e via, pela primeira vez, a si mesma. Sem as marcas que ela mesma causava. Sem procurar por pêlos, defeitos, rugas e cravos. Ela se via aberta, pétala por pétala, sendo ela mesma macia e espinhenta, bela e solitária como a Rosa que cresce no solo pedregoso.
Parou de experimentar-se nas extremidades. Nas dores intensas ou na felicidade exagerada. A vida seguia o curso das pequenezas. Da semente do dente de leão que entra pela fenda dos pensamentos e pousa na ponta do nariz da inspiração mostrando a confirmação da vida.
Ela não mais precisava agradar a platéia, nem se reconhecer na menina dos olhos alheios. Ela era ela. Tão ela, nem tão bela, nem tão feita. Era ela em suas belezas e chatices, em sua completa autenticidade. Era ela no palavrão e no mantra, e, também nas onomatopéias.
Mal raiava o dia e ela corria para vida. Corria e era feliz com seu cabelo despenteado, suas roupas sem marca, seu tênis sujo de lama. A bochecha rosada pelo calor da corrida. O pó do asfalto, a luz transpondo a densa neblina, o frio de fora a transformar-se em orvalho ao encontrar o calor de dentro.
Corria ao som da música ambiente, dançando e regendo as flores, montanhas e vento. Estava em si, sem desvios de rota. Estava em si, em toda parte, mesmo estando na multidão, Era só, pó das estrelas.
nada como a nudez de ser o que se é! :)
ResponderExcluirnossa. sempre q leio esses textos sinto q o arquético das entranhas, entranhas mesmo, e´compartilhado. e é tão intimo, tão do eu e do nós, q dá até um pudor.
ResponderExcluirsinto um pouco de pudor.
eu me sinto um pouco exposta por seus textos.
vc tá falando de mulher, né.
...
olha, esse negócio de ser mulher é muito maravilhoso. é tão profundo, tão dificil e tão maravilhoso.
é vertigem de dar náusea e dar gozo.
então, timidamente, p q niguem me veja aqui me vendo em vc, (pq era p ser segredo eu, os segredos de espelho de mulher) um beijo de fraterna.
mulher é bicho irmão de todas.
grata pelo espelho.
ja falei que amo esse espaço?
ResponderExcluirpois amo!! A intensidade daqui me deixa encantada.
de novo, parabéns!!
Tem selo pra vcs, no alma nua, passem por la.
bjs