quinta-feira, 3 de março de 2011

Sobre o parido

Por: Kali
Desenho: Ana Vasconcellos

Crescia dentro de mim. Em cada respiração pensava um pouco nele. Os afazeres me desviavam para produzir outros semelhantes embora não brotassem das vísceras. Aquele era diferente. Era gestado, crescido lá mais no profundo de mim, temperado com genes de um lugar onírico.

Talvez tivesse um pai desconhecido. Talvez fosse do espírito santo. Era diferente. Crescia mesmo se eu não fizesse nada. Mexia por dentro sem minha vontade. Mudou meu eixo. Sentia-me plena, especial, desfrutando de breves momentos de completude em que se pode ser um sendo dois.

Até que começou a pesar. Comprimir as entranhas, incomodar a alma. Estava chegando a hora de parir. Eles gostam da madrugada fria, silenciosa, lunar. A Dança começa intensa, sem expectadores, medos ou projeções. Um túnel a me levar para outra instância da existência.

O mundo fragmenta-se em cacos despencando em um tubo de espelho. Tudo gira e a cada contração uma mandala caleidoscópica única se estampa. Até que velocidade dos abraços anímicos aumentam cindindo êxtase e dor naquele quarto penumbral. Nem o vento, nem uivos caninos distraem o dente que crava no pensamento.

Sinto um desejo de parar, é o sono que chega, o cansaço que bate. Impossível. Solto os pensamentos na força da gravidade psíquica que os dedos não mais acompanham. Pedaço por pedaço meus forjados com o infinito surgem em verbos, frases sem sentido, palavras ao acaso.

Encontro o ponto final. Um alívio existencial. Um êxtase doloroso. Estou revirada por dentro. É o fim! Está no mundo, tem meu sobrenome mas com vida própria.

Hora de respirar, circular pela casa. Hora de aquietar por dentro. Não resisto e antes de adormecer quero contemplá-lo mais uma vez antes que ganhe o mundo.

Choro copiosamente diante dele. As entranhas reviradas, despetaladas jazem no texto parido.

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