sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um canto qualquer

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos






*texto escrito em fevereiro de 2011. 


Depois que ela foi embora sempre faltava alguma coisa.

A cidade cantava um vazio qualquer. Um cor de rosa a menos no horizonte, uma nota suave que se escondia no entardecer do dia.
Um sopro de mistério que escapava do cair da noite.

Faltava sempre uma coisa a mais. Uma flor amarela sobre o muro, um passarinho que beijava o jardim. Aquela gota de orvalho pendurada na folha verde pela manhã. 
Essas coisas pequenas, você sabe. Que se ajeitam quentes no coração da gente.

Faltava uma magia qualquer. Aquele vento que me invadia durante a tarde, em sorrisos incontidos. Aquele frio sorrateiro que de repente percorria a espinha, bem antes do telefone vibrar uma mensagem qualquer. 
Aquele calor que coçava o pescoço e subia desavisado, fazendo corar as bochechas tímidas.
Ah, aquela esperança vermelha de ver tudo florescer em outras cores... Todo aquele universo, que me encolhia inteira no olhar do outro. Todo o outro que cabia inteiro nesse universo tão meu. O corpo mole, vencido. Como faltava. Como ela me faltava em silêncio.

Faltava-me também aquela muda poesia de estarmos uma de frente a outra, em um canto qualquer da cidade. Amplidão que nos acolhia, simplesmente. Sem perguntar nada. Não havia perguntas. Havia o espaço, apenas, com seus pequenos refúgios de tempos suspensos.

Tempos em que nos colhíamos, inventadas uma na outra. Tempos de surpresas boas, de admiração de olhos bem abertos. De tocar o que estava por trás de. Como ainda me faltam esses tempos.

A cidade canta um canto qualquer de ausência. Uma melodia à toa de saudade. Um canto doce que me lembra de não estar mais lá. E de estar, a todo tempo.

Imaterial canto da presença rarefeita, que se dissipa no céu no cerrado. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Homem das Sombras

Por Kali
Imagem de Ana Vasconcellos




Ela brincava pelo jardim. Subia em árvores de vestido, girava a saia na melodia inaudível. Ela era o universo em sua dança infantil. Bebia água e derramava sob o peito que se arrepiava pelo frio da ventania. E corria sentindo as folhas a esfregarem-se sobre seu corpo, as gotas de chuva a arrepiar a existência.

Ao longe um estranho desconhecido, atrás da sombra de uma árvore, devorava uma maçã e a inocência de menina, sugando sua  leveza para dentro de seu falo. Ele queria penetrar o corpo para  da alma roubar o perfume que ela exalava.

Quando os olhos se encontraram, percebeu-se desnuda. Correu para o quarto para procurar um vestido e com tanto medo das sombras trancafiou-se no armário. E lá dentro com as tintas de sua imaginação, pintou a floresta, as folhas, o tesão, sem reproduzir o estranho das sombras.

Em total escuridão, devorando uma maçã, ainda sim conseguia fazer a luz e por ela ver as sombras refletidas atrás da macieira. Sonhava com a cobra a dançar em suas intimidades e o dente do veneno a perfurar-lhe a carne. Às vezes acariciava-se desejando com desdém aquele obscuro sentimento que a atraia e repudiava com mesma força.

Um dia teve coragem. Abriu o armário e percebeu que não mais enxergava. Por não ver precisava experimentar todo mundo através dos outros sentidos. Cheirava, lambia e esfrega-se em todo caminho.

Até que sua língua provou o amargo gosto do desejo. Macio e suculento como um morango maduro. Colocou para dentro, um depois do outro, até sua carne explodir em pedaços. Seu sangue de tinta colorida com bruxas, fadas, gurus e anjos escorriam por todo lado.

Ela se fragmentara em todas as sombras e luzes que a habitava. Até que recuperou sua inocência perdida e nos olhos da sombra fundia-se em luz.

Alguém segurou no colo a menina. Acariciando sua face e cantando a doce melodia - Está tudo bem. Ela não enxergava e falava um dialeto estelar que pedia para ser devolvida ao mundo das tintas. Ela precisava bailar novamente e ver a beleza da vida.

Ele deitou-a na cama, acariciando seu corpo inteiro. Ela sentiu o cheiro do desejo. Com medo e movimento procurou o falo que a violaria. Encontrou uma flor macia que curou sua ferida.

Cheirou, lambeu esfregou-se até que as sombras se tatuaram em sua pele como obras de arte que chamamos de cicatrizes.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sede

Texto escrito a quatro mãos
Por Silvia Badim e T. Cora. 
Ilustração de Ana Vasconcellos





Aquilo que não sabemos nos protege. O instante delicioso e cheio de pergunta. Será? Reticência leve seguida de um sim-mergulho.Um sim-vôo. Um sim-abrir-se, estar no colo. A leveza tranqüila de brincar com segredos, medos e desejos preservados.

Um sim que sorri e nos conta que não há pouso seguro. Um sim-vento, que sopra sem bússolas ou rotas programadas. Um sim vivo que se delicia com as possibilidades. Abrigo sem teto, horizonte aberto de quem ganha as estrelas.  

E se o mar fosse um colo? Eu quero o mar. Inteiro para nadar toda na falta de margem e beira. Solta em flutuação florescente de quase noite. Algas que resplandecem sob a lua cheia. Eu quero a lua imensa e amarela, a me contar segredos de luz sobre as águas escuras. Boiar no fluxo das correntezas sem bater os braços e as pernas, sentindo o gozo fértil de estar permeada de mar. 

O desejo mordido com a língua salgada. Vivo por entre os dentes, saliva quente com gosto de mais. Permitir-se ser só desejo. Poder ser movimento sem palavras. Desejo vivo e vivido em ondas de mar. Diante do mar não tem palavra. Diante do mar só tem mergulho e pele arrepiada, em poros abertos para que o vem.  

Eu quero o colo  inteiro. Ser minuscula em sua boca grande e dormir sentindo pulsar o peito. As mãos firmes em minhas costas, selar o espaço quase inexistente de não sermos nunca a mesma pessoa. Rir do descompasso de ser, das diferenças humanas de quem é. E tudo só um encontro em que não se precise de mais nada.

Só as águas fartas e o céu em constelação silenciosa. O tudo que se esconde onde nada se diz, a contemplação muda da força. O corpo saciado  a vontade renascida do fluxo branco das espumas. Não há mais palavra porque tudo meu está nos olhos. Num além daqui aqui mesmo. E qualquer outro lugar onde se esqueça a morte. Onde a gente se lembre muito pouco de tudo antes, e traga junto toda qualidade de segredos engendrados nos músculos, seios e ossos. E nada que seja minha dor se despeje, nada que seja meu desamparo se espalhe. Só a pele macia tocada em dança ágil, onde toda dor vira perfume . 

Estou nua e o que não sabemos nos protege. O abismo tem poesia e só venta por que derramei toda previsibilidade. Então vem, brinca comigo de ser o mar que talvez chova. Que talvez vente e faça sol quente de arder as vísceras. Que talvez da terra fecundada nasçam flores vermelhas para enfeitar nossos cabelos. Que talvez apareçam pássaros nos nossos ombros que cantem belas cantigas. E que a gente esteja e seja até quando ventar e existir sede. 

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Silêncio de dentes amarelos - parte II

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos


Sim, ela estava viva. Era mulher, e era Silvia. Uma Silvia vinda de muitas Silvias, desde que nasceu do ventre daquela que também se chamava Silvia. Era das selvas. Aceitou seu nome, com tudo que ele significava. Abraçou-se, abraçou sua mãe, e abraçou seu ventre - que pariu um filho homem, brotado do mais profundo amor que se permitiu tocar. Sentiu-se unida com aquela de quem veio, e com aquele que pariu - num ciclo incessante de continuidade da própria vida. Pensou no sêmen que a fez, pensou no sêmen do qual nasceu seu filho. Sofreu a incompreensão do masculino, e olhou de frente sua esquisitice e medo do sexo desconhecido. 

O homem ainda machuca. E machuca sem rosto e sem endereço, com força bruta capaz de fecundar o feminino. Sentiu amor pela incompreensão, um amor grande cheio de medo e vontade ardida de ferida.

Soube-se mulher. Mulher que é capaz de jorrar sangue pelas vísceras abertas de todas as gerações que pariram esta terra. Mulher que pode parir a si própria, e gerações inteiras. Que é capaz do impossível de carregar e alimentar quem tem fome. Que reproduz a força gerada no ventre do universo.  

Ousou rezar para a força. Ousou ter fé. E sentiu uma mão quente sob sua cabeça a irradiar luz. Colocou a cabeça no chão, e do chão sentiu seus ancestrais feitos de vento, água, terra, folha, raio e trovão. Ouviu o som marcante e ritmado a lhe tirar a consciência, e deitou no chão para nunca mais se levantar sem ele. Transmutou-se. E foi capaz de sentir a realidade palpável dançar com a realidade que agora toca com a percepção da alma. A emoção foi boa como um encontro desejado. Emoção feita do açúcar da casa da sua infância.

Pegou-se no colo. Ela era menina, e olhava o mundo com olhos de encanto. Ela tinha mãe, tinha pai, tinha irmã, tinha avós e tias sorridentes, cachorros, gatos, vizinhos falantes, amigos pequenos e portas sempre abertas. Tinha o amor sólido pregado nas paredes da velha casa, em vários quadros antigos. Chorou de saudades. Um choro sentido que inundou o chão da sala.

Lembrou-se da certeza dos dias felizes na rua que a criou. Do colo grande da mãe, do aconchego nas noites de frio e susto, da rotina do dia resolvido. Das pessoas por quem nutria o mais profundo amor sem mágoa. Sentiu saudades do amor sem receio e sem decepção pré-agendada. Quis ficar com a menina no colo como se não houvesse amanhã. E nem hoje. Quis acalentá-la antes de romper-se em descrença desconhecida. Antes de camuflar a fragilidade de ser Silvia.

Desejou que a vida inteira coubesse na sua infância colorida, onde ela estava salva. E desejou esconder-se ali, no meio do quintal onde cresceu com o pé no chão - com suas plantas verdes, cimento cinza, e esperança de menina. Mas o relógio apitava o tempo presente. Sacudiu os tapetes, trancou a porta, e guardou a chave no seu coração. Sentiu que esses momentos continuariam vivos, até o fim da lembrança dela própria. Vivos de memória arraigada nas pernas que caminham o dia em que se respira.   

Num piscar de olhos, conseguiu voltar para a cama de hoje. E caiu no sono com as cores quentes, as mãos calejadas, os ovos, o labirinto, os tambores, a menina e a força ancestral. O silêncio. Despertou com as lágrimas ainda úmidas. E conseguiu enxergar o agora em que se pisa na matéria. O hoje com seus desafios concretos de facas afiadas. O hoje que ela queria enterrar no ontem e no amanhã que não vinha. Os desafios duros que teria que amolar com os dentes. A couraça que teria que vestir para não se perder nos espinhos.

Correu para a porta. Lembrou-se da fuga, dos vícios, das armadilhas, e segurou-se para não acender o cigarro. Percebeu que estava, há tempos, em estado latente de fuga. Da vida que não enxergava no hoje de injustiças, burocracias e dificuldades pungentes. Que não conseguia visualizar em meio ao cansaço e descrença diária. Em meio à falta de borboletas a lhe tomarem o estômago.

Fuga velada do ovo que não desabrochava para lhe dar asas. Da resposta que não chegava certa como o colo da mãe. Da própria face que não reconhecia mais depois de escavar rumo à dor inconsciente. Da voz que não saia e lhe mostrava o silêncio de dentes amarelos. 

E ela não sabe mais o que lhe resta depois do silêncio. Sabe-se indefinida e permeada por algo mais. Algo que foi semeado na terra molhada com o sangue vermelho que derramou de sua carne trêmula. Carne aberta pelos dentes que morderam os ossos da alma. Dentes que ainda estalam ao lembrar o gosto de morder as entranhas.

Mas existe alguma esperança teimosa. Algo mais há de brotar quando o buraco se abrir em caminhos de arco-íris. Quando dos ovos nascerem asas que possam enxergar o fim do labirinto. Até lá, resta apenas este imenso deserto com flores plantadas em areia densa. Flores que derretem sob o sol tórrido, e deixam pétalas soltas a dançar no vento. Restos de folhas que congelam com o frio estúpido da noite aberta.

O silêncio.