sábado, 4 de fevereiro de 2012

Silêncio de dentes amarelos - parte II

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos


Sim, ela estava viva. Era mulher, e era Silvia. Uma Silvia vinda de muitas Silvias, desde que nasceu do ventre daquela que também se chamava Silvia. Era das selvas. Aceitou seu nome, com tudo que ele significava. Abraçou-se, abraçou sua mãe, e abraçou seu ventre - que pariu um filho homem, brotado do mais profundo amor que se permitiu tocar. Sentiu-se unida com aquela de quem veio, e com aquele que pariu - num ciclo incessante de continuidade da própria vida. Pensou no sêmen que a fez, pensou no sêmen do qual nasceu seu filho. Sofreu a incompreensão do masculino, e olhou de frente sua esquisitice e medo do sexo desconhecido. 

O homem ainda machuca. E machuca sem rosto e sem endereço, com força bruta capaz de fecundar o feminino. Sentiu amor pela incompreensão, um amor grande cheio de medo e vontade ardida de ferida.

Soube-se mulher. Mulher que é capaz de jorrar sangue pelas vísceras abertas de todas as gerações que pariram esta terra. Mulher que pode parir a si própria, e gerações inteiras. Que é capaz do impossível de carregar e alimentar quem tem fome. Que reproduz a força gerada no ventre do universo.  

Ousou rezar para a força. Ousou ter fé. E sentiu uma mão quente sob sua cabeça a irradiar luz. Colocou a cabeça no chão, e do chão sentiu seus ancestrais feitos de vento, água, terra, folha, raio e trovão. Ouviu o som marcante e ritmado a lhe tirar a consciência, e deitou no chão para nunca mais se levantar sem ele. Transmutou-se. E foi capaz de sentir a realidade palpável dançar com a realidade que agora toca com a percepção da alma. A emoção foi boa como um encontro desejado. Emoção feita do açúcar da casa da sua infância.

Pegou-se no colo. Ela era menina, e olhava o mundo com olhos de encanto. Ela tinha mãe, tinha pai, tinha irmã, tinha avós e tias sorridentes, cachorros, gatos, vizinhos falantes, amigos pequenos e portas sempre abertas. Tinha o amor sólido pregado nas paredes da velha casa, em vários quadros antigos. Chorou de saudades. Um choro sentido que inundou o chão da sala.

Lembrou-se da certeza dos dias felizes na rua que a criou. Do colo grande da mãe, do aconchego nas noites de frio e susto, da rotina do dia resolvido. Das pessoas por quem nutria o mais profundo amor sem mágoa. Sentiu saudades do amor sem receio e sem decepção pré-agendada. Quis ficar com a menina no colo como se não houvesse amanhã. E nem hoje. Quis acalentá-la antes de romper-se em descrença desconhecida. Antes de camuflar a fragilidade de ser Silvia.

Desejou que a vida inteira coubesse na sua infância colorida, onde ela estava salva. E desejou esconder-se ali, no meio do quintal onde cresceu com o pé no chão - com suas plantas verdes, cimento cinza, e esperança de menina. Mas o relógio apitava o tempo presente. Sacudiu os tapetes, trancou a porta, e guardou a chave no seu coração. Sentiu que esses momentos continuariam vivos, até o fim da lembrança dela própria. Vivos de memória arraigada nas pernas que caminham o dia em que se respira.   

Num piscar de olhos, conseguiu voltar para a cama de hoje. E caiu no sono com as cores quentes, as mãos calejadas, os ovos, o labirinto, os tambores, a menina e a força ancestral. O silêncio. Despertou com as lágrimas ainda úmidas. E conseguiu enxergar o agora em que se pisa na matéria. O hoje com seus desafios concretos de facas afiadas. O hoje que ela queria enterrar no ontem e no amanhã que não vinha. Os desafios duros que teria que amolar com os dentes. A couraça que teria que vestir para não se perder nos espinhos.

Correu para a porta. Lembrou-se da fuga, dos vícios, das armadilhas, e segurou-se para não acender o cigarro. Percebeu que estava, há tempos, em estado latente de fuga. Da vida que não enxergava no hoje de injustiças, burocracias e dificuldades pungentes. Que não conseguia visualizar em meio ao cansaço e descrença diária. Em meio à falta de borboletas a lhe tomarem o estômago.

Fuga velada do ovo que não desabrochava para lhe dar asas. Da resposta que não chegava certa como o colo da mãe. Da própria face que não reconhecia mais depois de escavar rumo à dor inconsciente. Da voz que não saia e lhe mostrava o silêncio de dentes amarelos. 

E ela não sabe mais o que lhe resta depois do silêncio. Sabe-se indefinida e permeada por algo mais. Algo que foi semeado na terra molhada com o sangue vermelho que derramou de sua carne trêmula. Carne aberta pelos dentes que morderam os ossos da alma. Dentes que ainda estalam ao lembrar o gosto de morder as entranhas.

Mas existe alguma esperança teimosa. Algo mais há de brotar quando o buraco se abrir em caminhos de arco-íris. Quando dos ovos nascerem asas que possam enxergar o fim do labirinto. Até lá, resta apenas este imenso deserto com flores plantadas em areia densa. Flores que derretem sob o sol tórrido, e deixam pétalas soltas a dançar no vento. Restos de folhas que congelam com o frio estúpido da noite aberta.

O silêncio.

2 comentários:

  1. Se tem lembrança, é porque houve um "tempo bom".
    Se tem muita lembrança, é porque houve muito "tempo bom".
    Mesmo que ocorressem sob o risco da inocência.
    Que é para onde todas as boas lembranças querem voltar.

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