terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pinóquio

por: Kali
Desenho: Ana

Estava no céu celestial perfeito, desembrulhando os papéis azuis das maças. Decidiu nascer quando viu refletido no espelho de si mesma o amor entre dois jovens. Talvez ela tenha chegado depois do gozo urgente na escada do prédio. Escura, sombria, misteriosa entrada naquelas entranhas adolescentes.

Nada sabe sobre o tempo que ficou guardada na concha, esperando a hora da abertura para a revelação da pérola. Apenas que causava em sua mãe uma vontade de pipoca e chiclete. No céu só havia maças.

Seu segundo desembarque foi igualmente sem poesia. Cortaram o ventre da pequena para tirar na marra aquela que tentava nascer. Em viagens internas adormecida ela ainda sonhava com um pequeno orifício que tentava se encaixar e uma sensação de queda abrupta por ter sido retirada pelos pés.

O frio da madrugada que lembra a primeira separação. Ela tentou segurar na toalha da fria balança que revelava o peso, de início e para sempre de um corpo robusto. Quase quatro quilos de medo e choro. Onde estava o amor? Onde estavam os braços e seios que um dia ela imaginou? Agulhas, viradas abruptas, colírios cegantes.

Onde estava a poesia que vira lá de cima? Ela, depois de muito tempo, encontrou os seios. Mamava com volupia até tirar sangue da menina, que chorava e persistia. Ele regugitava e lhe diziam que estava doente. Deram-lhe um veneno que quase tirou-lhe a vida. O menino correu com ela e não dexou. Tantas vezes ela desejou profundamente ter deixado o placo antes que pudesse ficar em pé. ela sabia que não era essa sua história.

Durou tão pouco tempo a era do peito e colo. Antes de meio ano já estava entregue a comida deste mundo, que devorava com vontade na tentativa de que o estômago cheio preenchesse o coração que faltava um pedaço.

Antes que se desse conta, um outro ser ocupava seu berço, seus seios, os braços. Deixada na estrada descobriu que era um anjo e que anjos e humanos não tem uma relação plena.

Adentrou no mundo tecnológico das máquinas na tentativa de encontrar a fada madrinha. Ela sabia o que queria. Queria ser uma menina de verdade para que um dia a mãe pudesse lhe amar, de início e para sempre. Mergulhou profundamente em uma alagada cidade de memórias antigas. Diante da fada, congelou porque as águas tornaram frias demais com o passar dos anos e das eras glaciais.

Até que o sol veio a derreter e fazer chorar as águas internas. Saiu e encontrou um espelho. Aquele mesmo que vira antes de chegar enquanto saboreava sua maça. Diante da menina dos olhos da fada ela se viu menina de verdade. Olhou mais fundo e viu brilhantes sorridentes olhos cor de romã a lhe fitarem em gratidão. Viu seus próprios olhos a olharem na menina dos olhos da menina mãe.

Um comentário:

  1. escuto daqui o barulhos dos papéis azuis. como suas maças com a ousadia de quem desembrulha a si própria. lindo texto!

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