segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Algumas Tréguas


por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos




Para uma menina no seu país inventado.

“Temos tréguas de paz”, pensava eu no decolar do avião que saia de Buenos Aires, e me trazia de volta para casa. 

A busca incessante pela completude de ser, talvez fosse permeada por momentos em que nada mais é necessário, além daquilo que abrigamos no peito no momento em que se respira. E nesse momento eu respirava feliz, e aliviada por aceitar-me finita e cheia de anseios que nunca se satisfariam.

“Aceitar minha própria incompletude talvez seja a senha que preciso para acessar os meus segredos de paz”, suspirava eu ao olhar a janela com suas paisagens de nuvens gordas. Um tapete branco, suspenso no ar, acompanhava meus sonhos acordados de viagem. E eu estava desperta para a minha pequena existência faltante.  

As novidades dos dias passados acalentavam-me a alma sempre ansiosa e sedenta por algo mais. Chegara, enfim, num lugar onde eu queria estar. Um lugar meu que se aventurava a estar só, e andar só, pelos desrumos de se trilhar um caminho tão íntimo.  

Um lugar que nascera de tantos tempos de se estar perdida, com o coração batendo fora do peito. Um lugar que emergiu lá de dentro do fundo do poço, aquele mesmo fundo do poço que a minha amiga Lélia Almeida* descreveu como um lugar úmido e próspero, capaz de nos revelar nossas obscuridades salvadoras. Onde a aridez de si mesmo é quase insuportável, mas nos revela a matéria prima de ser o que se é. E assim nos salva das mesmices e armadilhas construídas para que nos separemos da nossa vida mais profunda.

O vôo seguia desconfortável, mas dentro de mim estava quente e bom. Sentia-me livre e desculpava a mim mesma por tudo que nunca poderia ser. Por tudo que eu nunca poderia tocar e nunca poderia experimentar em tempo de vida.

As limitações, enfim, me davam um sentido. E aprendi: eu nunca poderei tê-las. E, ao não tê-las, aceito reduzir-me ao que encontro nesse caminho estranho de se andar com as próprias pernas. Tudo que colho tem sentido, porque é o que me cabe. E é libertador livrar-me de querer o mundo que nunca pode me caber inteiro.

As horas seguiam com avisos do piloto e comidas apressadas. Com um sorriso discreto no canto da boca, voei devolvendo ao universo azul da janela o que nunca poderia ter. E como retribuição pela minha teimosia de tantos tempos, ele me devolveu presentes possíveis de se tocar com as duas mãos. 

Enfim, parecia ter aprendido a escolher. A aceitar as perdas do que nunca é quando se escolhe. E a ganhar o que me oferta o caminho escolhido.

Nesses tempos de viagem, suas linhas chegaram-me tão conhecidas. As letras familiares contavam-me sobre o anseio de acertar o passo dentre as tantas oportunidades de ser, que não se desdobravam em realidade. Um anseio de ser livre, de não precisar, de poder se desenvolver plenamente rumo ao crescimento que se almeja.

Mas o que, enfim, se almeja? Quando seguimos um caminho visando um desfecho, somos sempre surpreendidos pelo desfecho que não chega. Ou pelo desfecho vai aparecendo diferente das nossas expectativas, com cores e tons que nos machucam os olhos. As cores cinzas das incertezas e dos desvios não combinam com o colorido de um lugar pleno de primavera, que desenhamos como a nossa trilha esperada.

Mas não seria esse, também, um modo de se vivenciar o caminho? Não seria o cinza, também, uma bela cor para colorir os céus de si mesma? Lembro-me do Guimarães Rosa, e da travessia de que ele fala tanto no Grande Sertão Veredas.  A travessia é um bálsamo, onde se colhe as grandes riquezas que nos levam a qualquer lugar. É nesse meio do caminho, embolado e cheio de areias movediças, que se dispõem para nós as maiores grandezas de qualquer percurso.  

E só se pode chegar inteiro quando se vive a travessia. Alerta para o fato de que, aquele lugar em que imaginávamos chegar, nunca será aquele em que aportaremos num futuro próximo ou distante. A gente atravessa um rio a nado, diria Guimarães, e vamos parar numa margem bem diferente da que se pensou antes de pisar nas águas. As águas têm vida própria.

E, para as pessoas que não aceitam soluções prontas e massificadas, o caminho é muito mais longo, e as paragens muito mais mutáveis e escorregadias. Muitas voltas e percursos por desertos, tempestades, terras de gelo e lugares sem nenhuma cor. Mas que nos trazem, a todo tempo, delicadezas escondidas em espinhos e ventos cortantes.

Se o caminho tem coração, ele pulsa. E se o caminho é seu, ele é rico em aprendizados, e ele é como deveria ser. Mesmo com as durezas e asperezas de se andar de ponta cabeça por tantos quilômetros. Mesmo com a tontura de se ter o sangue na altura dos olhos, a vista turva, e nenhuma certeza de onde se possa pisar em terra firme e dormir abrigada do frio.

Aqui de longe torço para que você se acolha com a devida generosidade. Que saiba perder para poder ganhar, que saiba se ouvir para poder escutar o que o destino lhe traz com as mãos cheias de flores. Que saiba aceitar os tempos duros, o fundo do poço, os dias de sede e boca seca em frente ao mar.

Aqui de longe torço para que a sua força cresça em coragem, para que seu fogo se espalhe em brasas de esperança, e para que novos tempos possam emergir para te fazer feliz com o que trazes para deixar no mundo, seja ele o que for. E como for.

Conte comigo para inventar caminhos e dividir atalhos mais brandos nessa urgência de ser o que se é.

* Oração do fundo do poço, de Lélia Almeida: 

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