quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A dança de um


Das pensações da terra de Gaia.


Por Silvia Badim com sopros da menina do casarão. 


Desenho de Ana Vasconcellos






Chegou o momento em que só restava partir. Eu estava cansada, e um calor morno envolvia meus ombros. O dia era claro, daquela claridade de arder os olhos. E um frescor sem precedentes umedecia o vazio, apesar da seca que consumia tudo lá fora.

Não existia mais vida nas terras sem vento. Não havia música. E sem música, não há dança. 

Por vezes eu cantava, um lamento triste que lhe chegava aos ouvidos. Você ouvia, de longe, mas o eco não vinha. Era eu com a minha voz rouca, e o lamento grave. Eu queria dançar. 

Ensaiava os passos, e tentava sozinha conduzir a dança de dois. No improviso da minha dança desordenada, eu lhe convidava. Seguindo o pulso que vinha de dentro. O pulso do que dividíamos em segredo. Era muito, e era tanto. Mas você não dançava.

No seu sorriso distante, você se comovia pelo que tocávamos na imensidão aberta desse horizonte cor-de-rosa. E ao me tocar contava-me que sim, tudo existia, grande e disforme como aquilo que não tem nome, e que não pode ajustar-se à realidade que reduz. Não era possível ajustar-se a nada. Era leve e voava, sem lastro e sem pouso possível.   

Você acreditava em mim, e me concedia alguns minutos de dança no seu ritmo de um. Era o possível, e era o tempo que você me dava. O tempo presente do que não se realiza. Tempo de se querer mais, e não poder ter mais nada. Um tempo injusto.

Eu podia sentir a tristeza do que já se esvaia, do que voltava ao plano imaterial dos sentimentos em suspenso, mesmo antes da dança terminar. Era tudo tão triste e tão bonito, perfeito como tudo que não se toca com as mãos reais e frias. Nuvem colorida que nos acompanhava, onde quer que estivéssemos. Presentes e etéreos, em conexões mudas e dispersas pelos cantos que andávamos. Sempre um e outro, em cada canto. Dividindo nossa solidão impartilhável.

Eu encolhia a barriga para não apertar o seu espaço, e tentava acreditar que era possível aceitar a não dança como uma dança possível.

Mas eu quis desejar um pouco. Eu desejava. Uma dança leve, quase nada de tão delicada. Desejava que meu cavalo cavalgasse nas terras de dentro de mim, e que quase nenhuma guerra me escapasse pelos olhos. Que a vontade, toda ela, se deitasse em palavras até diminuir de intensidade e tamanho. E que eu, por determinação de mim, plainasse sob todo o relevo da geografia do meu desejo de vales e cachoeiras invisíveis.

Eu tive que soltar o cavalo. Um cavalo selvagem não sobrevive sem a liberdade de ir de encontro ao que deseja. Não há cachoeira a qual se possa controlar o fluxo, e os grandes vales jamais se tornam planícies.

Foi então que eu soube: eu não posso. Não, não mais. Eu não posso sustentar tamanha leveza. Eu sou humana ainda. Preciso da música dançada a dois. Do movimento que se solta pelo que faz sentido, feito a quatro pés e braços juntos, que não se recolhem antes da música terminar.

Quem sabe se eu prometesse esperar qualquer soma de dias com o sorriso de sempre e sem saudades. Quem sabe se parasse de doer à ausência muda, e as expectativas pudessem se transformar em flores. Quem sabe se eu pudesse viver pela metade, respirar em pedaços desconexos, me envolver em outros corpos sem carregar a sua presença silenciosa nas minhas extremidades. Mas essa não seria eu. Certamente, não seria eu.  

Eu preciso da música ritmada. Cantada, tocada em instrumentos vivos. Preciso poder desejar. Não posso mais estar contida no quadrado que você me dá. Preciso da resposta que chegue ainda quente, da continuidade palpável. Eu preciso ir além, espalhar-me solta e fluida pelos arredores, viver tocando o que existe por trás de. Mesmo que o que exista seja menor, tão menor, do que tudo que pode ser. Mas, é hora de ser. Qualquer coisa, mesmo que não seja.

Contenho as lágrimas. Não é mais possível alimentar-se de poucas migalhas, pois eu tenho fome. O estômago não pode mais digerir a si mesmo, queimando-se pelo ácido em excesso do que não vem. 

E tanta coisa eu ainda não sei. Não sei viver assim, leve no meio da fumaça que arde os olhos pelo que não se enxerga. No meio do labirinto sem pistas, tentando decifrar as tantas perguntas sem resposta.  Eu preciso pisar o chão, descansar sob as árvores com sombra fresca e água em abundância. Essas coisas bobas, você sabe. Que fazem todo sentido na minha andança no mundo dos homens. 

Eu não preciso de muito, não. Nessa etapa do caminho, sinto-me feliz e livre em apenas ser. E ser miúdo, dividir o tempo pequeno do que é grande. Sem peso ou amarras que nos façam doer as costas. E quero a liberdade de apenas viver, junto, o que existe porque é junto. E nada mais. O resto é resto, e o resto pode ser descartado porque não nos cabe. Formalidades, enredos, linearidade, nada disso nos cabe. Mas há de me caber o viver. Porque sem ele, não tem roupa nem comida quente. É estar sempre no frio da solidão, nua no gelo do ártico. 

Mas sabe, eu ainda acredito. Você conseguiu penetrar lá no fundo, na imensidão escura de mim. E lá está, na utopia do encontro, no entendimento profundo e quente que alivia a alma. Um lugar seu, só seu, bem guardado nas melhores lembranças do coração. Que me acompanhará e me dirá palavras bonitas, quando de repente eu olhar para o céu e lembrar que eu não estou só. 

Mas algo não se move mais. E eu preciso de movimento.
Preciso me libertar de onde sufoca pela completa ausência de ar. Eu preciso de vento. 

É, não consigo mais. Preciso juntar os dois pés ao meu lado e ir de encontro ao que for inteiro. Despeço-me ainda sem saudades da sua ausência. Pois sua presença invisível descansará risonha dentro dos meus olhos por longo tempo. Sua ausência longa, constante, imóvel se espalhou tão permitida dentro de mim, que agora ela é exalada com a respiração ofegante.

As portas estão abertas, eu sei. Não há cadeado ou chave. É só ir.
E então eu vou.

Um comentário:

  1. Texto deveras poético, denso, profundo!!!! Transmite sentimentos que se pode, quiçá, ser apropriado e compartilhado!!
    Não sei se é vivência ou ficção (ou as duas coisas)!!! Importa, no entanto, sobretudo que se trata de uma "viagem" por dentro, transparecendo emoções vívidas e/ou vividas!!
    Bj do Zé Augusto

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