quinta-feira, 7 de julho de 2011

Pulso

Por Gaia/Silvia Badim
Imagem de Ana Vasconcellos




Estava cansada de tentar conter os excessos. 

De novo lá estava ela embaralhada com o muito que nunca ficava pouco. De novo tentando conter a enxurrada que queria correr ladeira abaixo, tapar os ouvidos para não ouvir os gritos graves que antecediam a trovoada.

Ela tentava, e os excessos escoavam ligeiros. Sempre adiante de seus gestos atrapalhados. 


Juntava os pequenos gravetos que tinha nas mãos. Em gestos quase patéticos, insistia em fazer uma barreira com os pedaços quebrados, equilibrando-os cuidadosamente em obra sempre inacabada. E ao fim, terminava por assistir o desmoronamento da cerca inventada, e a força bruta da natureza incontida.

O muito sempre era muito.

Ela própria, sempre transbordando as tantas coisas que não lhe cabiam. Sempre expelindo os exageros dos dias difíceis, a gastura das grosserias da vida, a tontura dos desencontros. O amor, o tesão, a falta, o fim, a raiva incompreendida. A beleza e a poesia de tudo que via, e que não podia guardar dentro de si. A dor pontuda que lhe apertava o peito, e que não podia carregar dentro de si. 

Nada nunca era pouco.

Vivia seu desequilíbrio de quem anda constantemente com os pés descalços, sob as pedras quentes. De quem vê pelos dedos de tudo que toca. De quem tem muitos olhos para guardar sensações distintas. De quem tem peito grande para sentir todos os arrepios que sopram com os ventos.

Ela estava cansada, sim, cansava-se. Queria esvaziar o muito, derreter com o suor guardado de todas as escaladas empreendidas. Soltar as mãos e deixar ir tudo de tudo que estava lá, amontoando as suas estruturas inchadas.

No meio do cansaço, cuidava da saúde que reclamava do que vazava sem controle. Do corpo que pedia trégua. Da ambiguidade que precisava vencer para seguir em frente.

Queria fazer casa leve, pisar suave, comer com calma a comida da alma. Fazer refeição quente e cuidadosa, capaz de nutrir a necessidade de silêncio interior. Mas pressentia que em poucos momentos, o próprio vazio tornaria-se excesso.  E vazio em excesso também é muito.

“Deve ter uma fonte”, pensava ela. “Deve ter uma fonte do muito”.

Procurou tanto sem resposta, que chegou a conclusão a correnteza brotava de todos os poros abertos. “A nascente do rio espalha-se por uma vasta terra disforme”, lembrou-se ela, invocando as imagens guardadas na retina das vastas nascentes do Rio que tinha nome de Santo.

Talvez a fonte fosse ela própria, toda ela. Coração que pulsa indefinido as intensidades excessivas que faziam dela o que ela existia no mundo. Talvez a própria vida fosse muito, intensamente desordenada, e ela apenas a reverenciasse, súdita fiel do impulso vital.

Talvez ela apenas dançasse a dança da vida, em passos largos e sem ensaio, contraindo-se e expelindo o pulso motriz de tudo que vive.

Talvez o caminho fosse parar de conter. Parar de se debater na correnteza. 

E que assim fosse: pulso, pulso, pulso.

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