quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

amor de águas turvas

Por Silvia Badim/ Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


 

Abriu a porta do quarto e lá estava ele, o homem que ainda segurava sua mão. 

O homem dormia um sono profundo, despreocupado com o viver do tempo-relógio. Olhou-o assim puro, desarmado, flutuando no mundo dos sonhos. E, de súbito, sentiu um amor antigo lhe invadir o corpo. Um amor que nasceu sozinho, sem fazer força, impulsionado pelos ventos do acaso que insistiram em soprar, incansáveis. Um amor que viveu pleno, gozou, sofreu, apagou, renasceu em pequenos amores e se transformou na família que hoje chama de sua. Um amor que era seu e era dele, e velejava de acordo com a maré e o curso das águas. 

O amor não tinha norte. Ele seguia. Levou-os, quase perdidos, ao lugar onde estão hoje. Até não saberem mais o que eram. Até diluírem-se em possibilidades sem nome. Sabiam apenas que estavam no mesmo barco, e a água salgada arrepiava-lhes as entranhas. Sabiam-se parceiros que dividem a rota de navegação, e seus mistérios desavisados. Mas, no mais, não sabiam. Como as crianças não sabem que crescem quando acordam e despontam na manhã de sol.   

E eles queriam seguir - mesmo sem saber, mesmo sem dar nome. As ondas se erguiam, por vezes, e balançavam as estruturas molhadas. Eles enfrentavam as ondas, sem consciência lúcida do que elas carregavam. Quase sem querer. Sem intenção forçada de mudarem o rumo da embarcação. Sem desviarem das tempestades. Elas vinham. E voltavam. E eles ainda deslizavam sob a água turva. 

Tocou no homem, que não se mexeu. Ele era de carne e osso. Real como as paredes que lhe abrigavam da chuva. Havia envelhecido, tinha cabelos brancos salientes e a mesma pele alva decorada com tons rosados. Seus olhos pequenos transpareciam o homem-menino-grande que não tem pressa de crescer, e aquela tristeza antiga desajustada – que ela conhecia tão bem. O homem tinha sentimentos belos, e ela o acolhia com o colo grande e quente.

Entre os dois havia a distância dos anos. Incompreensões de dois indivíduos que se sabiam em universos particulares. Cada qual na sua enormidade incomunicante. Com diferenças fundantes e diálogos sem palavras. Mas com a identidade reconhecida pelo destino de ser o que eram - que ultrapassava, às vezes, o próprio entendimento.

Seguiam lado a lado, dividindo o cotidiano do calendário. Ele era certo como o dia que vem. Certo como parte indissociável do que ela era hoje, e do que sabia sobre duas pessoas que dividem o mesmo percurso. Todo o resto eram incógnitas vivas, que cresciam com o tempo a dois.

O tempo partilhado, por vezes, era áspero como escamas de peixe – e lhes espetava o dia comum. E a estranheza era vizinha, como a árvore que lhes fazia sombra nos dias de sol. Passaram-se os anos, e a árvore cresceu junto com o amor que lhes rendia frutos - enormes frutos vivos que semeavam outras formas de vida. Junto com as mãos que se seguravam fortes. Com os ímpetos e discussões sem motivo palpável. Com a partilha cansada ao cair da tarde, anoitecendo em borboletas sem asas.

Era o amor, afinal, amor real de pés enlaçados embaixo da coberta. Discutido no café da manhã, entre pães e xícaras. Quente e frio, efevercendo com o descompasso do dia-a-dia. Com o espelho a refletir imagens cruas. Era belo e assustador, sólido e frágil, como tudo que se sabe palpável e sonoro neste mundo de Deus.

E o amor era vivido como o correr do filho que crescia sem impedir o tempo. Sem nunca ter sido pronunciado para o mundo lá fora, sem nunca ter sido trocado em palavras ditas sem desvio do canal semântico. Eram os dois. E partilhavam o um que construíram sem saber que carregavam tijolos. Sem saber que eram capazes de sedimentar e edificar uma relação que resistia aos anos e aos arroubos da maré. 

Seguiam. E o vento soprava. Ela sorriu escondida, pronta para racionalizar o que não tem palavras de ciência. Como um cacoete que lhe piscava o olho. Tomou os remos, parou o barco, e começou a tirar a água turva que enchia os compartimentos de madeira.

Acordou o homem. Era preciso que trabalhassem juntos. Que levantassem com força de dois. A água turva era dela e era dele, e balançava o barco com ameaça de tempestade. Era preciso conter a água escura que percorria a velha embarcação. Construir um canal de quatro mãos, capaz de drenar a água que assolava as velhas formas.

O movimento coordenado não saia fácil. Mas eles tentavam, entre sorrisos e cumplicidades. Entre velhas e novas descobertas. 

E os ventos continuavam a sopram, sem dizer para onde iam.   

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