terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Fins de novos começos



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos
 
Enfim, havia chegado o fim do ano.

Ela recolheu suas coisas, e seguiu rumo ao trânsito familiar que lhe era habitual nesta época do ano. Trânsito corrido de encontros marcados, de dias de rever e cultivar as suas bases e estruturas longínquas.

Ela foi. Atravessou os céus carregados, sentindo os pingos grossos baterem no vidro da janela. Pingos de nuvens cinzas, que lhe faziam companhia em meio aos pensamentos abertos em tons de incertezas latentes. Apertou as pequenas mãos que lhe eram companheiras. E subiu para os céus, sentindo as vertigens sem rosto amigável. Vertigens de não saber mais onde era o chão. 

Ela chegou às suas terras, embalada pela voz da cabine que lhe desejava as boas vindas à garoa fina de São Paulo. Pegou suas malas, beijou as pessoas que lhe esperavam ansiosas, e sentiu algum calor de chegada. Mas não chegara completamente. Alguma parte sua não aterrizava.

Ela aguardou-se junto ao saguão cheio do aeroporto, olhando os rostos sem importância que lhe cruzavam o caminho.  Deveria saber que aquela espera era em vão - como se esperasse que, de repente, o vento parasse de soprar em frente ao mar. As águas escoavam em excesso, e ela não aterrizava. Sua cabeça voava por sensações diversas, e ela flutuava por outras paragens.

Enfim, conduziram-lhe ao seu destino. Ela seguiu o caminho de estradas concretas que cortavam a serra, e brincavam com a altitude de seu corpo. Caminho aberto por onde ela sentia a dormência de quem ainda está envolta em nuvens. De quem ainda vaga por espaços aéreos e neblinas desconhecidas.  

Foi recebida com calorosos beijos melados. Tios, primos, família emprestada, família nova, família velha. Todos lhe esperavam com a mesa posta, os braços abertos e os mesmos velhos problemas que passavam pelas gerações de anos. Ela sorriu o encontro. E lá estava ela, respirando seus outros tempos. Suas outras festas e outras vivências interiores. Seus outros ares - seus, só seus e de mais ninguém. Ares que aqueciam seu nariz e alimentavam a sua mente inquieta.

Foi quando tentou se acolher num banho quente. Estava cansada, mal via os detalhes do velho banheiro da casa que tanto chamou de sua. Os pingos quentes beijavam sua pele. E ela dormiu ali, como quem esquece que vive de matéria densa. E ali ficou meio em pé, meio no ar, meio acordada em outra dimensão de tempo. Entre pensares que se multiplicavam com a água que escorria pelo meio de suas pernas. 

Pegou uma gilete e, em um gesto costumeiro, não percebeu que cortara mais que os pêlos pretos que lhe habitavam a canela dormente. Cortou fundo - pêlos, pele, carne branca, carne rosa, carne vermelha. Só percebeu o tamanho do corte quando sentiu a ardência profunda apertar-lhe as vísceras. O arrepio agudo que perfurava as suas camadas de existência viva. 

O sangue escorria, banhando-lhe os pés. Vermelho escarlate em fluxo incessante, como um rio que corre. Seu rio de dores de entranhas estranhas.

Ela acordou assustada. O vermelho era intenso, e a dor pungente despertava-lhe para o momento em que os pingos inundavam o chão do banheiro. Sim, ela estava viva. Sentia sua carne por trás da carne. Tudo exposto, aberto, revelando coisas que ela não queria ver. Mas que estavam lá, no entanto. Vermelhas, disformes, purulentas, de repugnâncias tão suas. No entanto ela que estava lá. Ela que latejava incompreensões de cortes inesperados. Que olhava forçada o que se escondia por baixo de. O que seu corpo expelia em erupção visceral e que doía, doía, sem fuga ou subterfúgios escorregadios. 

Tentava estancar o sangue, encharcando as toalhas alvas, cuidadas com tanto esmero. Ela queria chorar o susto. O despertar forçado para a realidade que lhe cobrava atenção. Que lhe sacudia para si mesma. Mas a dor calava-lhe as lágrimas. E ela chorava seco, imóvel diante do tamanho da ferida. 

E assim seguiu para a virada de seu ano. Para seu fim de novos e vivos começos.
Com sangue e esperança renovada pelo fluxo das águas.  

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