domingo, 30 de outubro de 2011

Assombros e escombros

Por Silvia Badim
Escultura de Ana Vasconcellos







Talvez você não saiba nunca, porque fui eu quem quis. Fui eu que andei, fui eu que rompi, fui eu que tomei a iniciativa de irmos para qualquer canto além do nosso - esse nosso canto por tanto anos protegido das tempestades lá de fora. Esse canto inventado que tanto nos abrigou, escondido embaixo da sombra da árvore que cresceu enquanto dormíamos. A árvore que cresceu em silêncio e cobriu a casa, que invadiu o teto e deixou suas folhas espalhadas pelos nossos cômodos apertados, por entre roupas e tapetes amarrotados com pêlos de cachorro e barulhos de criança.

E foi assim de repente que tudo ruiu, foi de repente e durou tanto. Foi naquele dia, naquele instante, naquele ano em que não mais chegou a primavera e a gente viveu um outono sem fim. O longo outono não fazia inverno, não havia frio gelado e depois primavera, não havia mais ciclo de flor. O outono era cinza e a gente dormia tanto, eram tantos sonhos e realidades, tantos pesadelos de vida e morte, tantas metades desconjuntadas. Noites imensas que não se faziam dias.

Eu fechava os olhos e no escuro procurava os seus pés junto aos meus, que me beijavam macios. Eles estavam lá, quase inertes, e respondiam ao meu medo. Eles também tremiam. E eu desejava com ardor um acordar que não vinha, um acordar de cores vibrantes e frutas maduras. Mas não tinha primavera, nem sequer inverno. Não havia cheiro de flor nem vento nem jardim colorido. A vida não renascia, não passava o tempo gestado, não havia proximidade de parto possível. Era seco e doía, doía, comprimindo o coração por entre as paredes de uma passagem que não se abria.

Foi então que o meu despertador que tocou. Sim, ele sempre toca, com aquela música que você tanto conhece. E eu sempre alerta aos toques de despertar. Era sempre eu que lhe tirava da cama com beijos corridos, resistindo ao seu abraço que me convidava para afundar a cabeça nos lençóis e perder a hora. Mas eu acordei, eu tinha que levantar, as rachaduras cresciam nas paredes e pingavam água armazenada, estava úmido e faziam-se fungos doentes. Verde musgo que entrava pelo nariz e alcançava o corpo dormente, que subia numa tontura circular que asfixiava e sussurrava aos meus ouvidos: acorde.

Acordada de pé e desperta eu morria, olhando a vida que amanhecia com a dor de não caber mais em lugar algum. Com a claridade quase insuportável aos meus olhos tanto tempo incapazes de ver. E foi então que eu vi. A árvore havia crescido torta, e agora eu enxergava a sua postura envergada, consumida pela força dos ventos. Ela balançava de um lado para o outro, suplicando para ir ao chão e descansar para nunca mais.

Parei em frente à árvore, carcaça da beleza que se esvaia no tempo martelado de poeira. Fraca, com os galhos magros, ela me olhava com olhos pedintes, chorando sua seiva já escassa. Eu nunca dantes tinha ouvido a língua das árvores, a língua direta e inebriante das árvores. Abracei seu tronco áspero e, emocionada, entendi o seu suplício. Ela queria ir. Era hora de deixar o que não se podia mais sustentar.

E eu tive que ajudá-la a ir, fui eu que cortei seus galhos e arranquei as poucas raízes que ainda se agarravam ao solo. Sim, foram as minhas unhas que ficaram cobertas de barro vermelho, fui eu que chorei a dor de cortá-la com as minhas próprias mãos assombradas diante da morte. Fui eu que juntei os pedaços e caminhei pelos escombros, fui eu que destrocei e me perdi no meio de tantos pedaços disformes. Foram as minhas pernas lascadas de farpas de pingaram sangue, foi assim, fui eu que usei o machado e eu não sabia.

E sem saber eu carreguei a dor como um fardo pesado, um fardo tão meu e tão nosso, um fardo que eu haveria de carregar para o resto dos dias. Fui eu que matei árvore, sim, fui eu que cortei a nossa árvore em meio ao sangue e as lágrimas de seiva. E fui eu que tive que te dar a notícia da morte, fui eu que te contei e ouvi seu choro surdo de tristeza. Fui eu que segurei seu corpo cambaleante e te abracei no vazio, desejando que não houvesse mais morte nem fim nem nada que te fizesse sentir aquela dor grave alastrada por dentro.

Mas havia a morte, grande e volumosa como fato consumado. E era preciso força para velar o corpo morto, para fazer o rito de passagem. Era preciso seguir em frente sem a sombra da árvore, sem o canto escondido, sem o que era de nós enquanto dormíamos. Sem tudo que já havia sido e não mais poderia ser.

Juntos derrubamos os muros e acendemos a fogueira, queimamos tudo em pó e tudo se foi, tudo que era. A gente mergulhou no desconhecido, sim, vertiginosamente, cada qual cumprindo a sua coragem. Sobrou apenas o pó cinza e o horizonte aberto que se seguiu a tudo aquilo, o pó mágico que guardamos para os novos tempos, fértil de amor desabrigado.

E foi amor tudo que sobrou, um amor grande e tão nosso, pronto para ser espalhado em busca de novas primaveras. E que se façam flores, renascidas, vivas, coloridas.
Até que.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Velada

Por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos






Naquele dia ela apagou as luzes e velou o seu cansaço.

Naquele dia as pernas bambas teceram redes nas almofadas, e sua cabeça acomodou-se no vazio. Seus olhos despertos ficaram baixos, olhando em silêncio o escuro da madrugada.

Ela velou a sua dor.

Cantou suave uma melodia guardada na memória, de algum tempo distante. Juntou flores e jogou no ar aromas de beleza, para enfeitar seu rosto triste. Para disfarçar as olheiras que cresciam como dois buracos desconhecidos, e as respostas em suspenso que nunca chegavam.

Ela velou sua incompreensão.

Pisou leve pela casa, os pés no chão frio, os ouvidos atentos para os barulhos da noite. Um chá quente, um casaco velho, os ponteiros do relógio tilintando na cozinha. O sono que não vinha, os cachorros acomodados embaixo da mesa no seu roncar despreocupado. Ela seguiu a rota das horas em frente a si mesma, parada imóvel no tempo dos minutos. Naqueles mesmos minutos em que nada vinha, e o vazio se erguia enorme pelas horas que já somavam-se dias.

Velou a sua própria incompletude, com uma obstinação teimosa de quem ainda acredita.

Um dia, quem sabe, as luzes desceriam a montanha e invadiriam a sua sala de janelas abertas, fazendo sentido. Até lá, ela velaria atenciosa esse tanto que não se encaixava, e que queimava por dentro como pedras incandescentes colocadas na fogueira de si mesma. Ela havia acendido o fogo, e o alimentado com seu vento devastador. "Não havia mais volta", ela pensava ao ver as pedras consumirem-se pelas chamas revoltas. Sim, não havia mais volta. Agora era o fogo de nunca mais.  

Ela mesma havia colocado, cuidadosamente, uma por uma das suas pedras para serem consumidas pelas brasas vermelhas, até transformarem-se em algo denso e condensado pelo calor que vinha de dentro.  Suas pedras, todas elas, guardadas com esmero ao longo de seu caminhar de rotas falhas. Todas elas derretidas na fogueira que desfigurava, e deixava apenas o preto carvão brilhante em pedaços mutáveis.

Era preciso tempo, e ela o velava. Tempo, o maior dos deuses de seu altar. O orixá que guardava seus tesouros transformados, e os ensinamentos que haveriam de brotar nas terras férteis. Tempo, velho, tempo, novo, tempo.

Que se queime, que se transforme - ela velava. 
Até que.