segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Velada

Por Silvia Badim
desenho de Ana Vasconcellos






Naquele dia ela apagou as luzes e velou o seu cansaço.

Naquele dia as pernas bambas teceram redes nas almofadas, e sua cabeça acomodou-se no vazio. Seus olhos despertos ficaram baixos, olhando em silêncio o escuro da madrugada.

Ela velou a sua dor.

Cantou suave uma melodia guardada na memória, de algum tempo distante. Juntou flores e jogou no ar aromas de beleza, para enfeitar seu rosto triste. Para disfarçar as olheiras que cresciam como dois buracos desconhecidos, e as respostas em suspenso que nunca chegavam.

Ela velou sua incompreensão.

Pisou leve pela casa, os pés no chão frio, os ouvidos atentos para os barulhos da noite. Um chá quente, um casaco velho, os ponteiros do relógio tilintando na cozinha. O sono que não vinha, os cachorros acomodados embaixo da mesa no seu roncar despreocupado. Ela seguiu a rota das horas em frente a si mesma, parada imóvel no tempo dos minutos. Naqueles mesmos minutos em que nada vinha, e o vazio se erguia enorme pelas horas que já somavam-se dias.

Velou a sua própria incompletude, com uma obstinação teimosa de quem ainda acredita.

Um dia, quem sabe, as luzes desceriam a montanha e invadiriam a sua sala de janelas abertas, fazendo sentido. Até lá, ela velaria atenciosa esse tanto que não se encaixava, e que queimava por dentro como pedras incandescentes colocadas na fogueira de si mesma. Ela havia acendido o fogo, e o alimentado com seu vento devastador. "Não havia mais volta", ela pensava ao ver as pedras consumirem-se pelas chamas revoltas. Sim, não havia mais volta. Agora era o fogo de nunca mais.  

Ela mesma havia colocado, cuidadosamente, uma por uma das suas pedras para serem consumidas pelas brasas vermelhas, até transformarem-se em algo denso e condensado pelo calor que vinha de dentro.  Suas pedras, todas elas, guardadas com esmero ao longo de seu caminhar de rotas falhas. Todas elas derretidas na fogueira que desfigurava, e deixava apenas o preto carvão brilhante em pedaços mutáveis.

Era preciso tempo, e ela o velava. Tempo, o maior dos deuses de seu altar. O orixá que guardava seus tesouros transformados, e os ensinamentos que haveriam de brotar nas terras férteis. Tempo, velho, tempo, novo, tempo.

Que se queime, que se transforme - ela velava. 
Até que.   

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