sábado, 29 de janeiro de 2011

Manga madura


Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos
 


“Já somos adultos” – lembrou ela, fitando a paisagem da janela.

Sentada à beira da varanda, a vida lhe passava em poucos segundos.  A vida num piscar de olhos, correndo grande sem contar porque o segundo que lhe espiava era inteiro, e porque o mesmo segundo já não existia mais. Porque tudo cabia neste respiro, onde o expirar quente evaporava-se no ar.  

De repente, ela era adulta. De repente tudo tão breve. E a sua vida construída assim, meio sem querer, sem conseguir parar o tempo que escorria pelos seus dedos. Os anos somaram-se no calendário. Já haviam juntado o 3 ao 4, um junto ao outro. Já haviam lhe dado um filho com anos acumulados em quase todos os dedos de sua mão direita.  Já haviam lhe colocado desafios para mais anos de compreensão, que nunca acabariam em entendimento.

Os anos passavam, e contavam-lhe que a vida chegava à maturidade – com o cheiro de manga madura que invadia seu quintal. Maturidade de mulher adulta que, quanto mais vive, mais consegue contemplar o que não sabe. Que, quanto mais segue, menos tenta segurar-se nas certezas expiradas.

Ela espantava-se. A maturidade chegava-lhe assim, tão silente. Tão branca, e cheia de dentes. Tão sem respostas. Tão nova em meninices, tão cheia de interrogações e perplexidades. “A maturidade, talvez, fosse aceitar o espanto”, pensou com certo alívio. 

Esticou-se na rede, na noite fresca que ventava calma para a madrugada. Os pés arejados reverenciavam a lua, e o balanço devagar de seu corpo fazia breves ruídos de mosquito. Tudo estava ali, sim, tudo estava ali. Tudo escuro e saboroso como as mangas que caiam no chão de terra, cumprindo seu ciclo com a natureza. 

O cheiro invadia os arredores. Cheiro de manga madura, escorrendo líquido doce. Ela madura na varanda, balançando suas incompreensões. O cheiro vivo, a grama molhada, o frio que invadia seu coração.

Ela andava calma naquelas noites de raios e chuvas bravas. Estranhava-lhe a sua calma diante do caos, o seu corpo inerte sem tentar nadar contra a correnteza. Estranhava-lhe estar no fluxo sem se debater, flutuando em constante transformação. Aberta para o mundo que lhe abraçava o pensamento, sem rotas planejadas. O mundo maduro do espanto.

Abraçou seus medos. Eles estavam calmos, deitados no fundo do peito. Nem eles eram mais os mesmos. Caiam do pé da mangueira e abriam-se, já passados, para serem comidos pelas abelhas.

“É preciso cultivar o próximo ciclo das mangas”, lembrou-se. Agora passaria o tempo, a árvore ficaria nua, a lembrança do gosto doce ficaria no ar. Passaria o tempo, ela adulta, ela madura em medos comidos e novos caminhos de liberdade. Ela incógnita diante do espanto. Silente e inerte, contemplando a beleza dos ciclos que a invadiam e seguiam seu curso assim, sem aviso e sem descanso. Que chegavam ao fim, e anunciavam novos e esvaziados começos. 

“A vida é mesmo embalada por esse movimento”, aceitou. Aceitou os fins. Aceitou as unhas que caiam, e nunca mais cresciam as mesmas. As mangas que despencavam amarelas, quase laranjas, e nunca mais nasciam as mesmas. A mudança do que já não é mais, e nunca mais poderá ser. 

Descascou a fruta e mordeu sua carne felpuda. Os fios emaranhando-se nos dentes, os pés cobrindo-se do frescor molhado da grama. Saboreou o que podia tocar naquele momento. O doce, o verde, o escuro. Momentos fartos que antecediam a estiagem. Enfastiou-se.

Sobrou apenas o espanto, duro e cru como o caroço da manga - que agora roía com dentes afiados.

É. Ele não se come. Apenas se planta.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Tic-Tac

Por Silvia Badim/Gaia

Desenho de Ana Vasconcellos



No momento descoberto,
desconcerto embaixo dos lencóis.

o olho grande sobre a cama vazia,
a vida inteira no segundo da expectativa.
viva inteira, vida corrida,
vida que quer ser vida-vivida.

os ponteiros desbravam o silêncio,
do que nada vem.
nada chega na hora martelada,
da madrugada.

cobertor pequeno para os pés grandes,
cama gelada para o corpo quente.
sonhos sem consolo,
anseios sem aconchego.

respiração perdida,
saliva entre os dentes
dispara insensatas
palavras.

palavras de vento
saudades de poeira
dissipadas no ar da noite,
que brilha estrelas de madeira.

imaterialidade
ou realidade?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

amor de águas turvas

Por Silvia Badim/ Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos


 

Abriu a porta do quarto e lá estava ele, o homem que ainda segurava sua mão. 

O homem dormia um sono profundo, despreocupado com o viver do tempo-relógio. Olhou-o assim puro, desarmado, flutuando no mundo dos sonhos. E, de súbito, sentiu um amor antigo lhe invadir o corpo. Um amor que nasceu sozinho, sem fazer força, impulsionado pelos ventos do acaso que insistiram em soprar, incansáveis. Um amor que viveu pleno, gozou, sofreu, apagou, renasceu em pequenos amores e se transformou na família que hoje chama de sua. Um amor que era seu e era dele, e velejava de acordo com a maré e o curso das águas. 

O amor não tinha norte. Ele seguia. Levou-os, quase perdidos, ao lugar onde estão hoje. Até não saberem mais o que eram. Até diluírem-se em possibilidades sem nome. Sabiam apenas que estavam no mesmo barco, e a água salgada arrepiava-lhes as entranhas. Sabiam-se parceiros que dividem a rota de navegação, e seus mistérios desavisados. Mas, no mais, não sabiam. Como as crianças não sabem que crescem quando acordam e despontam na manhã de sol.   

E eles queriam seguir - mesmo sem saber, mesmo sem dar nome. As ondas se erguiam, por vezes, e balançavam as estruturas molhadas. Eles enfrentavam as ondas, sem consciência lúcida do que elas carregavam. Quase sem querer. Sem intenção forçada de mudarem o rumo da embarcação. Sem desviarem das tempestades. Elas vinham. E voltavam. E eles ainda deslizavam sob a água turva. 

Tocou no homem, que não se mexeu. Ele era de carne e osso. Real como as paredes que lhe abrigavam da chuva. Havia envelhecido, tinha cabelos brancos salientes e a mesma pele alva decorada com tons rosados. Seus olhos pequenos transpareciam o homem-menino-grande que não tem pressa de crescer, e aquela tristeza antiga desajustada – que ela conhecia tão bem. O homem tinha sentimentos belos, e ela o acolhia com o colo grande e quente.

Entre os dois havia a distância dos anos. Incompreensões de dois indivíduos que se sabiam em universos particulares. Cada qual na sua enormidade incomunicante. Com diferenças fundantes e diálogos sem palavras. Mas com a identidade reconhecida pelo destino de ser o que eram - que ultrapassava, às vezes, o próprio entendimento.

Seguiam lado a lado, dividindo o cotidiano do calendário. Ele era certo como o dia que vem. Certo como parte indissociável do que ela era hoje, e do que sabia sobre duas pessoas que dividem o mesmo percurso. Todo o resto eram incógnitas vivas, que cresciam com o tempo a dois.

O tempo partilhado, por vezes, era áspero como escamas de peixe – e lhes espetava o dia comum. E a estranheza era vizinha, como a árvore que lhes fazia sombra nos dias de sol. Passaram-se os anos, e a árvore cresceu junto com o amor que lhes rendia frutos - enormes frutos vivos que semeavam outras formas de vida. Junto com as mãos que se seguravam fortes. Com os ímpetos e discussões sem motivo palpável. Com a partilha cansada ao cair da tarde, anoitecendo em borboletas sem asas.

Era o amor, afinal, amor real de pés enlaçados embaixo da coberta. Discutido no café da manhã, entre pães e xícaras. Quente e frio, efevercendo com o descompasso do dia-a-dia. Com o espelho a refletir imagens cruas. Era belo e assustador, sólido e frágil, como tudo que se sabe palpável e sonoro neste mundo de Deus.

E o amor era vivido como o correr do filho que crescia sem impedir o tempo. Sem nunca ter sido pronunciado para o mundo lá fora, sem nunca ter sido trocado em palavras ditas sem desvio do canal semântico. Eram os dois. E partilhavam o um que construíram sem saber que carregavam tijolos. Sem saber que eram capazes de sedimentar e edificar uma relação que resistia aos anos e aos arroubos da maré. 

Seguiam. E o vento soprava. Ela sorriu escondida, pronta para racionalizar o que não tem palavras de ciência. Como um cacoete que lhe piscava o olho. Tomou os remos, parou o barco, e começou a tirar a água turva que enchia os compartimentos de madeira.

Acordou o homem. Era preciso que trabalhassem juntos. Que levantassem com força de dois. A água turva era dela e era dele, e balançava o barco com ameaça de tempestade. Era preciso conter a água escura que percorria a velha embarcação. Construir um canal de quatro mãos, capaz de drenar a água que assolava as velhas formas.

O movimento coordenado não saia fácil. Mas eles tentavam, entre sorrisos e cumplicidades. Entre velhas e novas descobertas. 

E os ventos continuavam a sopram, sem dizer para onde iam.   

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Fins de novos começos



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos
 
Enfim, havia chegado o fim do ano.

Ela recolheu suas coisas, e seguiu rumo ao trânsito familiar que lhe era habitual nesta época do ano. Trânsito corrido de encontros marcados, de dias de rever e cultivar as suas bases e estruturas longínquas.

Ela foi. Atravessou os céus carregados, sentindo os pingos grossos baterem no vidro da janela. Pingos de nuvens cinzas, que lhe faziam companhia em meio aos pensamentos abertos em tons de incertezas latentes. Apertou as pequenas mãos que lhe eram companheiras. E subiu para os céus, sentindo as vertigens sem rosto amigável. Vertigens de não saber mais onde era o chão. 

Ela chegou às suas terras, embalada pela voz da cabine que lhe desejava as boas vindas à garoa fina de São Paulo. Pegou suas malas, beijou as pessoas que lhe esperavam ansiosas, e sentiu algum calor de chegada. Mas não chegara completamente. Alguma parte sua não aterrizava.

Ela aguardou-se junto ao saguão cheio do aeroporto, olhando os rostos sem importância que lhe cruzavam o caminho.  Deveria saber que aquela espera era em vão - como se esperasse que, de repente, o vento parasse de soprar em frente ao mar. As águas escoavam em excesso, e ela não aterrizava. Sua cabeça voava por sensações diversas, e ela flutuava por outras paragens.

Enfim, conduziram-lhe ao seu destino. Ela seguiu o caminho de estradas concretas que cortavam a serra, e brincavam com a altitude de seu corpo. Caminho aberto por onde ela sentia a dormência de quem ainda está envolta em nuvens. De quem ainda vaga por espaços aéreos e neblinas desconhecidas.  

Foi recebida com calorosos beijos melados. Tios, primos, família emprestada, família nova, família velha. Todos lhe esperavam com a mesa posta, os braços abertos e os mesmos velhos problemas que passavam pelas gerações de anos. Ela sorriu o encontro. E lá estava ela, respirando seus outros tempos. Suas outras festas e outras vivências interiores. Seus outros ares - seus, só seus e de mais ninguém. Ares que aqueciam seu nariz e alimentavam a sua mente inquieta.

Foi quando tentou se acolher num banho quente. Estava cansada, mal via os detalhes do velho banheiro da casa que tanto chamou de sua. Os pingos quentes beijavam sua pele. E ela dormiu ali, como quem esquece que vive de matéria densa. E ali ficou meio em pé, meio no ar, meio acordada em outra dimensão de tempo. Entre pensares que se multiplicavam com a água que escorria pelo meio de suas pernas. 

Pegou uma gilete e, em um gesto costumeiro, não percebeu que cortara mais que os pêlos pretos que lhe habitavam a canela dormente. Cortou fundo - pêlos, pele, carne branca, carne rosa, carne vermelha. Só percebeu o tamanho do corte quando sentiu a ardência profunda apertar-lhe as vísceras. O arrepio agudo que perfurava as suas camadas de existência viva. 

O sangue escorria, banhando-lhe os pés. Vermelho escarlate em fluxo incessante, como um rio que corre. Seu rio de dores de entranhas estranhas.

Ela acordou assustada. O vermelho era intenso, e a dor pungente despertava-lhe para o momento em que os pingos inundavam o chão do banheiro. Sim, ela estava viva. Sentia sua carne por trás da carne. Tudo exposto, aberto, revelando coisas que ela não queria ver. Mas que estavam lá, no entanto. Vermelhas, disformes, purulentas, de repugnâncias tão suas. No entanto ela que estava lá. Ela que latejava incompreensões de cortes inesperados. Que olhava forçada o que se escondia por baixo de. O que seu corpo expelia em erupção visceral e que doía, doía, sem fuga ou subterfúgios escorregadios. 

Tentava estancar o sangue, encharcando as toalhas alvas, cuidadas com tanto esmero. Ela queria chorar o susto. O despertar forçado para a realidade que lhe cobrava atenção. Que lhe sacudia para si mesma. Mas a dor calava-lhe as lágrimas. E ela chorava seco, imóvel diante do tamanho da ferida. 

E assim seguiu para a virada de seu ano. Para seu fim de novos e vivos começos.
Com sangue e esperança renovada pelo fluxo das águas.