quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pequenas passagens obscuras

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos




Ela não era pessoa que precisasse ser lembrada de que dentro de tudo há um poço escuro. 
De que dentro da carne há o sangue, de que dentro da pele existem veias verdes, de que dentro dos pulmões dança um catarro espesso e amarelo - num vai e vem de fluídos, entranhas, tripas, secreções.

Ela não precisava ser lembrada de que dentro do peito há um espaço obscuro, tudo dentro de tudo, circuito incessante de matéria prima, de lodo de fundo de rio, de cheiro forte e inebriante de arder as narinas.

Muco, esterco, húmus, sangue, barro, esperma, gozo. Vida que lateja no asco, vômito que se come de novo, pulso que vai e volta mutante, prazer que nunca mais é o mesmo. Vida que se move em diferentes formas, respiros ofegantes em diferentes instâncias de nós mesmos, vida-vivida em dimensões invisíveis, em esferas intocáveis, em impulso primordial.

Ela não precisava ser lembrada de que há o fim, e de que somos seres incompletos, lindamente avessados em perversões, antagonismos, paradoxos e antropofagias da própria carne.

Ela olhava-se inteira com sua visão trêmula. Sabia-se finita e cheia de vida por baixo dos tecidos estranhos que lhe cobriam a pele. Um dia chegaria, de fato, a dormência de tudo que ela conhecera assim, tão rápido, nessa pressa do tempo martelado de se abrir os olhos, e fechá-los novamente.

Será que ela guardaria tudo que vira assim, nessa miragem da própria vida? Será que os anos lhe dariam a possibilidade de guardar as sensações experimentadas? O ego, céus, será que restará um pouco do ego depois de todo o percurso de fundo de rio?

Ela mergulhava no medo sem resposta, tentando entender o que não entendia com a sua parca racionalidade. Ela, que tocava o avesso, assustava-se com aquilo que jamais poderia tocar. Não lhe assustavam as estranhezas, o outro, os sentires, os excrementos, as repugnâncias e tudo que emanasse da vida. Mas era menina pequena diante de tudo que não era vida. Talvez ainda não tivesse aprendido a amar a não-vida como o único caminho possível. Talvez ainda não tivesse aprendido a gozar as suas pequenas mortes, e louvar a grande passagem desconhecida.  

Ela agarrava-se na terra, buscava o corpo do outro como um porto seguro de existir em matéria, percorria a solidez que fincasse seus pés em pouso firme. E lastimava, perdida, por saber que todos os artifícios eram incapazes de impedir o imprevisto fatal, para o qual não havia preparo nem companhia. O imprevisto que era o presente da própria vida, a coroa, o desfecho, a transformação. Encolhia-se, fugindo em pensamentos. Vivendo o momento presente em intensidades cruas e vorazes.  
.....

Mas não é que no fundo, bem lá no fundo, junto com o medo grande, ela achava bonita essa coisa toda de vida e morte? 

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