quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O contratempo da dança

Pela menina do casarão e pela menina dos ventos
Quatro mãos pensando juntas na terra de Gaia


Desenho de Ana Vasconcellos



A saudade é minha. A saudade é uma prece.

A saudade é minha. Um vazio de muitas vozes. Canto silencioso. Um lamento divino sem palavras. Um côncavo onde mora o impulso da dança. A saudade é o contratempo da dança, o segundo estático antes do movimento. Que pode durar muitos dias, que pode durar um tempo sem tempo. A dança é de dois e a saudade é só. Uma saudade inteira de estar partilhada, e tão cheia de si.

Às vezes eu queria vedar, aplacar, deixar de sentir. O vento corta a pele branca, arranha os poros abertos. Conta segredos de dor e traz nas mãos a falta gelada. Às vezes sinto que não posso mais. Preciso descansar embalada em um colo quente. Eu sou pequena ainda. Mas é certo que eu não estaria viva com tudo fechado. A dança não acontece sem ar. Diante da musica não há nada o que se possa fazer, e então eu danço. A dança também sou eu.

E depois de tudo aplacado, o que vem? Ninguém mais mora ali na terra sem vento. As janelas não esperam mais pela brisa morna. Não anoitece ali. Os olhos esperam exaustos por sono nenhum. Não há sono possível. E eu deixo escorrer pelos dedos o que não me cabe mais.

Só há então seguir o pulso, ir de encontro à saudade: a mais bela e friorenta jornada. A mais verdadeira dança, marcada pelo corpo que se move pelo que vem de dentro. Um corpo nu habitado de seu próprio desejo, correndo no vento dos dias de ser. Só ser em silencio imenso e fundo de si mesmo. Encontro que revigora a força motriz. Que me importa se não sei o que vira? Que me importa não saber? Que seja. Que seja o vôo improvável. Eu desejo. Estou livre.

E o sangue corre na falta. Quente escarlate que aquece a pele fria. No desequilíbrio o salto se forma e é leve, improviso que compõe a estética estranha de ser o que se é. Na saudade muda do desejo, a mágica floresce. Enlace harmônico em segredo.

O segredo da utopia palpável, ainda viva na memória do corpo. A utopia de caber no teu amor guardado, sem força nem esforço, respirando a alegria de estar ali. O movimento conjunto que desliza no improviso, que voa e aterrisa suave, que cabe exato no ajuste do espaço da partilha. A utopia de uma proximidade de encaixe perfeito. A utopia da delicadeza possível. De se entender sem falar. A utopia da escuta plena, de caber no que há de sublime dentro de nós. E de lá sair para caber no sublime do tempo que você me deu. A utopia de diante do medo, sorrir em segredo de presença partilhada. Onde toda força não assusta. Onde o movimento é um sim que floresce em terra boa.

Fecho os olhos e de todas as possibilidades desejo o mais bonito, o indizível. Desejo deixar ser, deixar vir. Desejo espaço para vir a sua força. Não reluto: entrego digo e calo. Aceito. Desejo ausência por que nela há vento, e o vento alimenta. O alimento do vento é perfume. Acolho a saudades, e agradeço a ausência que me deixa habitada de desejo. Na falta que me habita sou uma, sou muitas, e ali estou incandescente. Minha falta também sou eu.
                                                  
Você testemunha a minha falta, você me testemunha à distância. Esse eu tão cheio de pequenas grandezas, de forças e fraquezas perdidas no espaço. Ali onde não estamos, também estamos por completo. Grandes, sólidos, inventados. Na falta que pode ser leve, que também pode voar. E que voa. A gente brinca e pode rir dela, espalhada e disforme em nós mesmos. Ela também é amor. Amor dividido de olhos fechados. Ou quando no escuro te procuro e teus olhos mergulham em mar aberto.

Você vem, me toma, e no segundo seguinte me devolve para mim. E essa é a coisa mais triste e linda que seu amor me dá de presente. Amor de generosidades. Que nada retém, tudo é pertencimento. Que me penetra e me devolve inteira para eu ser eu mesma.

E então sobra um sorriso besta no canto da boca, um sol na nuca que me aquece os ombros. A coluna acesa pelo toque sutil do seu dorso. Sobra a presença silenciosa dos teus olhos negros, a utopia de caber no seu abraço e de sentir tudo aquecido por dentro.

Sim, a saudade é minha.

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