sexta-feira, 29 de abril de 2011

Vermelho Escarlate

Por Silvia Badim/Gaia
Texto e imagem




Andava perdida em pensamentos de labirinto.

Batia em portas e janelas fechadas, com a respiração sufocada. Faltava-lhe o ar, o pulso ritmado, o equilíbrio. O vento bateu na cortina, e mostrou a fresta da janela. Uma pequena fresta que iluminava o jardim com a luz do dia. Sim, era dia. E tinha luz. A fina camada de ar que apitava as velhas madeiras impulsionou-lhe os pulmões. Era o que precisava para conseguir sair. Alguns passos e alcançou a porta. Saiu descalça em feridas acesas.

Pisou leve alguns passos perdidos que lhe conduziram até a mata vizinha. Mesmo sem querer, adentrou seus caminhos rasgados. Mas, enfim, o que queria? Essa, talvez, fosse a pergunta de uma vida. A grande pergunta negra e oca, que não lhe deixava resposta. De novo a ansiedade comeu-lhe a voz. Talvez a resposta fosse muda.

Uma intuição contou-lhe apenas que ela queria morder os ossos da alma, com os dentes afiados e a língua áspera para sentir suas entranhas. E naquele dia ela mordeu fundo, com dentes de nunca mais – pois era preciso sangrar, derramar gotas em vermelho escarlate. Gotas que a lembrassem que ela estava viva, e seu sangue pulsava pelas grossas veias que apareciam no antebraço branco neve. Pingavam, uma a uma, e compunham uma poça harmônica na terra molhada. Lama e sangue, feito dela, juntavam-se à natureza e aos pés que lambiam a terra. Eram um só todo, perdido no meio daquele imenso céu de abril.

As nuvens, o sol, o sangue, a lama. O barulho da água e do vento, da solidão abrigada em seu coração. Embriagou-se de vermelho, numa tontura circular que a levara de volta às vísceras. Brindou-as. Estava só e estava viva. O resto era uma incógnita que percorria as matas e os pêlos de seu corpo. Os pêlos pretos sob a pele branca. A mata verde sob a terra ofuscante. Um só todo que balançava com o vento nas árvores, que dançava ao som uivante das folhas e dos passarinhos que cantavam o fim da tarde.

A solidão ergueu-se palpável como a grama que agarrava nas mãos. E fotografou-lhe as várias facetas. Foi então que conseguiu enxergar algo sem cor: ela não era uma, mas várias. Passado, presente, futuro, e a própria natureza. O que foi e o que será, e ainda o que nunca poderá saber que é. Sorriu de dor, uma dor alegre e aliviada, como aquela que tira o espinho da planta do pé. E com uma lágrima enterrou a solidão magoada na poça de lama. Sobrou apenas o medo humano da rota da vida. Da vida - ciclo - infinito sem matemática inteligível aos ouvidos de gente.

Exausta, encolheu-se perto da pedra cinza de textura quente. E a pedra abraçou seu corpo trêmulo. Ali permaneceu por um tempo sem relógio, até que se levantou com uma força de placenta. A partir daquele dia não conseguiu mais voltar atrás. Não havia volta. Ela era ela, e muito maior do que o que podia tocar. Maior ainda do que podia entender sobre si própria. Curvou-se sob o mistério que abrigava nas células vivas, que um dia se perderiam no universo das estrelas. 

O tempo tem ponteiros variantes e instáveis. E o caminho é escuro como a amora pendurada na árvore. Escuro e apetitoso, pronto para ser colhido por suas mãos. Pronto para amaciar seu estômago com fome. Limpou os pés na água corrente, e as unhas apareceram brancas, como olhos despertos. Seguiu um passo firme e só, feito de muitos, indo para muitos, perdido nos arredores da casa da montanha.

A mata se abriu e a casa estava lá, ainda com as janelas fechadas e as portas bambas. Recolheu-se num banho morno de cheiro doce. E dormiu, ainda molhada, um sono profundo sem pressa de despertar. 

Passaram-se dias e dias. E ela ainda acorda.

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