quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Coragem de pés descalços

 Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcellos

 
Ela estava cumprindo uma coragem.

Vestiu as botas guardadas no velho baú, e saiu rumo ao desconhecido que aparecia quando o silêncio lhe tomava o pensamento. Seguiu o caminho do sonho real de imagens e sentimentos, que pulavam coloridos no escuro dos olhos fechados.

No sonho estava parte fundante da realidade. O intangível que corporificava os seus anseios velados. O norte que brilhava sob a luz da lanterna, e lhe apontava a direção dos passos.

Apertou as botas firmes aos pés, e seguiu com a parcimônia de quem descobre como andar no escuro. A luz da lua era-lhe companheira. Por vezes aparecia forte, e por vezes sumia escorregadia por entre nuvens e trovoadas. Mas estava lá, firme, perene por trás das controvérsias do tempo.

E ela seguia a sua coragem. Às vezes muda trêmula de frio, às vezes falante de sons quentes. Cantarolando versos, esgarçando a garganta, soltando sorrisos largos ao vento. Esfregando os dedos, roendo unhas, investigando angústias. Tocando os muitos nós secretos incrustados na grande rocha perto do peito.

Ela andava os muitos rumos de sonhos. Quilômetros duros de enfrentamentos. Subidas e descidas de morros de dúvidas. Escaladas sem ar. As botas foram ficando sujas de barro grosso. Os dedos suados de pingos vermelhos. Os pés visitados por calos saltitantes de quem percorre lacunas.

Ela era ambiciosa. Queria a felicidade verdadeira, que se escondia por trás das armadilhas e abrigos fáceis. Que corria para longe das artificialidades e jogos de individualidades exacerbadas.

Ela queria o outro. O outro como parte importante de si própria. O outro inteiro, que ela precisava partilhar e incorporar para ser grande. O outro que eram outros insubstituíveis – cada qual com a sua importância indizível de ser. Cada qual completando-lhe e iluminando-lhe à sua maneira. E ela queria ser, o tanto que coubesse ser. Era possível ser tudo? Sim, ela era ambiciosa.

Armou a sua barraca na beira do rio que descia o enlevo. Tirou as botas e colocou os pés na água corrente. Era ela e o líquido doce que corria sem dono. Ela e o horizonte rosa do cerrado. Ela o apaixonamento inesperado pelo feminino que não sabia existir dentro de si.

Sentiu as suas ardências de febre de sol. Sua voracidade que não tinha alento na água corrente. Os muitos que lhe habitavam o coração. Anoiteceu.

Ela descalça pisou o chão de estrelas. A lua lhe sorriu disfarçadamente, e ela entregou ao espaço infinito as suas indagações. Com coragem para as lágrimas que pulavam de seus olhos cansados. Para a dor de querer o tudo que podia ser nada.

Acendeu a fogueira, e banhou-se da fumaça perfumada de folhas secas. Alimentou a esperança de viver pulsando o fogo sagrado. O fogo que lhe queimava por dentro, e lhe impulsionava a seguir a rota das estrelas.

Fechou os olhos para enxergar a realidade.
Com calor e coragem.





Nenhum comentário:

Postar um comentário