sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Sensibilidade de entranhas



Por Silvia Badim/Gaia
Desenho de Ana Vasconcelos

Neste momento ela não se deixava tocar. As vivências e horizontalidades a tomavam de assombros. O sexo era exagero, era invasão desmedida. Era descompasso. Seu momento era só seu. Estava incomunicável, perdida na própria carne. Seu corpo rosa, plácido e quente. Sozinho no mundo, à deriva dos acontecimentos. Deitado nu sobre a cama vazia. Pulsava no ar com bocas de travessão, com limites de palavras não ditas. Com reações físicas estupefatas.

Sentiu medo. Medo dito e consentido. Guardou-se em si como concha-mãe. Era preciso decantar o medo no solo das profundezas, entender o que o corpo queria dizer com sua sensibilidade de entranhas. Ouvir os arrepios surdos que lhe corriam os pêlos. Dialogar com a repulsa de penetrar-lhe o feminino, de sentir outro corpo dentro do seu. Era momento de ouvir o sangue murmurar os desatinos guardados no líquido interior. Misturar-se nas batidas aceleradas da tontura de desvarios. Internalizou-se – com a confusão de estar afogada em si.

Perdeu-se. Já não conseguia domar os instintos, o corpo vencia em agilidade. Domava-lhe a mente em gestos de impulso. Pernas que se cruzavam em sonhos, braços que seguravam os seios, febre que lhe tomava às madrugadas frias. Suava embaixo das cobertas, em palpitações grotescas. Sentia a própria pele, tocava o que se escondia embaixo do umbigo. Descobria e redescobria seus órgãos de fazer-se mulher.

O sexo cutucava-lhe as feridas. Mexia por dentro em memórias de útero alfinetado por algo sem cor. Sem forma e sem presença. Pulsava em paradoxos. O sexo era divino. Sempre aspirou à divindade de estar com alguém em conexão sagrada. Em estado alterado de consciência de amor e gozo profundo. Penetrar o espaço impenetrável entre duas pessoas. E, por vezes, tocou esse espaço consentido pelo divino. Encontrou-se, misturou-se, liquidou-se no profano e no sagrado. E viu o espaço escorrer-lhe pelos dedos atrapalhados de intensidades difusas.

Confundiu-se. O que era o sexo, afinal? Em que consistia esse desejo por coisas estranhas, quase vindas de outros planetas? A exposição desmedida do eu nu? O ser selvagem, bicho humano de ruídos indizíveis? O sentir irracional de atos impensáveis?

Latejou em contradições. Enormidades de perguntas que não lhe calavam a ânsia de não-sei-o-quê.

O falo lhe procurava com voracidade masculina. Pontudo, dominante, puro de selvagerias declaradas. E ela o olhava de longe, como coisa desencaixada - que procurava desmedidamente o seu encaixe para poder elevar-se em prazer encontrado.

Tudo era de fato muito estranho. Tudo era desejo. E ela sabia dos seus desejos quase não pertencentes ao espaço-tempo em que respirava as suas necessidades de mulher. Eram tantos, e tão leves, que preferia guardar-se. Sim, ela era estranha.

Não conseguia atender ao falo. Estava arredia como bicho ferido nas quatro patas. Algo secreto perturbava-lhe o sono. Algo de dor, algo de amor, algo de impronunciável. De profunda individualidade de solidão. Não saberia dizer o quê. Sabia apenas que se arrepiava como gato pronto para a briga.

Lembrou-se dos moralismos da infância, das falas das avós, das moças virgens reverenciadas. Da infelicidade de homem e mulher que ela acompanhava com os olhos de ingenuidade. Dos gritos de falta de amor, de falta de sexo sagrado. Dos medos vultuosos da mãe, que descobria com espanto a filha-menina com anseios de misturar-se a outros corpos. Do silêncio branco do pai.

Sentiu por dentro a lembrança de sua libido adolescente, que despontava correndo pelos corredores das casas em beijos roubados e toques abafados. Que queria dissipar o vigor do novo feminino que saltava-lhe os orifícios. Lembrou-se das trocas improváveis no fundo do quintal. O sabor era doce de menina moça. Sabor de escondido. As pessoas grandes sempre lhe respondiam com falas prontas de não. Falavam baixo como coisa quase feia. O sexo era para depois, muito depois, um depois de quase nunca. Um depois dito por vozes de temor e padrões engessados ao permitido.

Voltou ao tempo de hoje onde conseguira romper algumas barreiras. Já era adulta, vigorosa e parida. Já conseguia saber-se além, mulher sem binômios, mulher de sentir livre, mulher entranhas. Mas não conseguia dar o passo em direção ao outro lado do rio. Ficava parada na margem, contemplando a enormidade das águas, a enormidade do sexo-mundo. Seus pés tocavam o gelado, sua alma corria solta pela mata ciliar. Mas ainda não havia fôlego para a travessia.

Suspirou. Um dia suas pernas estariam firmes, quem sabe.

Um comentário:

  1. Como tem força as palavras, confesso que esse texto está mexendo comigo, causa uma sensação estranha, que não dá pra explicar...
    é um texto que não deve ser lido somente uma única vez, mas várias, degustando cada palavra, cada pensamento...
    âmago trepidante, que coisa...

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