quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Silêncio de dentes amarelos - parte I

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos



Ela ainda acorda. As noites passam frias, e os dias quentes de abrir os poros. Transita pelo deserto e pelo silêncio amarelo da areia. O silêncio engoliu sua voz, restando-lhe apenas algumas melodias roucas. Foi preciso calar a ânsia da resposta – ou da não resposta. E o desacerto das palavras desencontradas. O silêncio é suave, e sagaz. Ensina-lhe coisas que as palavras não sabem dizer. Coisas que se aprendem pelo sonho, e pelos pensamentos soltos no vento.

A suavidade queima seu coração com espinhos e código cifrados. Convida-lhe para seguir em interrogações. Agita-se. O coração corre. E ela procura em vão uma passagem menos árdua para cuspir as palavras não ditas. O labirinto ergue-se em grossas curvas sem possibilidades de pistas rápidas. Ansiou pela fala mansa e articulada que tantas vezes a livrara de si mesma. Olhou os lábios cerrados e a garganta seca, e riu-se da velha mania de querer encurtar o caminho com atalhos truncados. Já era tempo de curvar-se diante do assombro.

Ajoelhou-se. Pediu indulto aos vícios. Às armadilhas inconscientes que tecera em linhas de ferro. Queria a liberdade fria da noite sem luz. Queria a nudez. Olhou-se com clemência, ainda envergonhada, como quem apaga o cigarro aceso no meio da tragada. Estava verde de tosse seca, e o ar viciado ainda lhe enchia os pulmões. Sabia que não seria fácil largar os hábitos, e deixar vir à tona a face branca sem a maquiagem do tabaco. Ela gostava do cheiro mórbido, do formigamento da mente, de esquecer-se no meio da rota pálida da fumaça. Mas era preciso deter-se. Interromper a fuga cotidiana. E seguir respirando ar puro.

Era fim de maio. A luz do entardecer transpassava a janela com raios florescentes, inundando o quarto de laranja-rosa-amarelado. Cores que bailavam no horizonte azul do planalto central. Seus olhos refletiram o colorido. E ela coçou os dedos sem cigarro. Abriu a blusa e sentiu o quente lhe subir pelos seios arrepiados. Sentiu coragem de esquentar a si própria com a vida que vinha lá de fora. Desejou aspirar a própria vida viva em tons de laranja. Seu peito ferveu. Estava em silêncio escaldante.

E em meio ao calor do fim do dia, uma imagem lhe apareceu nítida como o retrato em preto e branco que enfeitava a estante. A imagem dela, envelhecida pelos anos, e frágil como uma boneca de porcelana. Assustou-se. Não estava preparada para enxergar o que reside debaixo das camadas de existência dura de mulher sem rédeas. Uma dor aguda lhe apertou o peito. Repulsou a imagem. Cuspiu sobre a porcelana branca. Quis esmigalhá-la com mãos impiedosas. Mas freou o ímpeto junto com a lágrima que insistiu em pular de seu olho esquerdo. Será possível pegar a boneca no colo? – agitou-se. Porque tanta repulsa a essa figura alva de fina existência? Seus passos insistiram congelados. E a pergunta se fez grande. Teceu ninho no seu travesseiro, e colocou ovos para serem chocados nas noites do inverno que se aproximava. 

Sentiu debaixo do lençol uma dor inconsciente de raízes grossas, a roçar-lhe as pernas. Para arrancá-la seria preciso pegar na enxada. E cavar até bater em água limpa. Aproximou-se da enxada, e agarrou-a forte com calos nos dedos. Uma voz conduzia-lhe a empreitada. E ela foi se aproximando desajeitada, até que começou a cavar. Suava o corpo todo. Sentia sede e lambia o suor, com a espinha dorsal contorcida. Não é fácil derrubar os próprios mitos. Pensou nos ovos que um dia haveriam de ganhar asas. Asas leves para alçar vôo livre. Asas de enfrentamento solitário na casca do ovo.

A cada estalada da enxada, sentia um músculo que não sabia existir dentro de si. Doía em múltiplos graus de dor interior. Dor que custava em aceitar como sua. Dor que não tinha mais nome. Doía. Mas sentia-se viva em pele de mulher escavadeira. Continuou cavando imagens e sentimentos desconexos, que sorriam por respirarem debaixo da terra. Dor e prazer. Amor e ódio camuflados. Mágoa sucumbida e carinho latente. Vergonha e orgulho de si própria. Faces da mesma moeda. Já era tempo de revelar e aceitar a face que não é bela.   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Flerte

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos





De repente ela estava ali, sentada em meio a um mar de gente sem rosto. 
A noite era fresca, e o evento era um protocolo divertido. 
Ventava um vento leve, e eu cheguei com as boas aberturas que me percorriam os dias. 

De repente eu estava ali. Com uma máquina na mão a registrar o escuro que envolvia as taças de vinho e os livros autografados. 
Esbarramo-nos, num instante cheio de acontecimentos.  
Seus olhos coloridos me convidaram a sentar. Eu sentei, com a naturalidade de seguir o pulso. 
E no ritmo acelerado de sentir, fui soltando palavras que fluíam ao seu encontro.  
Uma atrás da outra lhe chegavam conhecidas, em meio às outras vozes que ali estavam. 
Seu sorriso grande parecia gostar do que eu dizia.

Encontramo-nos. 

Tudo aconteceu muito rápido, impulsionado pelo fogo vermelho dos astros.  
Em segredo ela me olhou e disse: eu quero. 
Ouvi sua fala sem voz, e senti a força de seus olhos atentos. 
Em silêncio respondi: eu também quero. 

E de repente tudo estava ali. 

* texto escrito em agosto de 2011.