terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Ensueños (ou Sonhos de ouvidos despertos)



Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos

Foi então ali, no meio daquele concerto, por entre as notas melódicas e tristes do piano argentino. Por entre aquelas notas que cantavam belezas sutis e mistérios da natureza, fazendo chuva dentro do meu peito. Foi ali entre os rostos despreocupados e estrangeiros que fiz a minha prece em silêncio, e curvei-me diante das partituras e incógnitas que tomavam conta da pequena sala do Museu Manuel de Falla.

E foi ali que ele chegou mais uma vez, inundando-me com a brisa gelada daquela noite de estrelas. Eu estava lá, com o corpo desprotegido pelo dia leve. Com os ouvidos mansos e as mãos frias. E assim ele chegou de novo, invadindo-me com o seu tempo sem tempo. Com o tempo de um amor que não se esvai em anos. Com a beleza etérea do que não se vê em matéria.

Chegou à vontade como um velho conhecido, esparramando-se pelos dedos que tocavam as teclas melodiosas. De novo ele, de novo e sempre. Ele, aquele amor de águas fartas e geladas. Amor que se misturava com correntes quentes, águas salgadas, estrelas do mar. Aquele amor deserto, de areias escaldantes e grandes árvores verdes, das quais caem os frutos maduros que me alimentam nos vastos espaços vazios. Aquele amor pássaro de asas grandes, que sobrevoa os dias fazendo sombra em meus ombros.

Os temas tristes passavam pelas mãos cuidadosas que conduziam o piano, e adentravam meu peito em lembranças vivas. Experimentar uma grandiosidade que não se pode reter é uma dádiva, eu bem sabia. Uma dádiva ousada, e arredia demais para ser tocada por mãos demasiadamente humanas.

Eu sentia sua presença rarefeita, em todos os poros abertos. E podia acariciá-la por entre os dedos, saboreá-la no próprio corpo, roçar as notas musicais suspensas no espaço. Sentir o gosto bom de nunca mais, o gozo que não nos devolve mais os mesmos. Que escorre ligeiro para o espaço do indizível.

Um presente adornado com as mais belas cores, nunca vistas por olhos de gente. Um prazer de transcendências que não se retém, e nem se vê crescer com a linearidade dos fatos. Um amor de música tocada com os dedos da alma, de contemplação muda de quem observa pequenas mágicas.

A música inflou meu peito. Não cabia mais nada ali, até o expirar das notas presas na memória – que saiam, uma a uma, a ganhar a imensidão desconhecida. E assim eu aspirava música, mais e mais, num vai-e-vem que aquecia as narinas. E ansiava, de novo, pelo gozo de nunca mais.

Eu queria que ele pousasse sobre mim e que voasse livre, com as suas asas abertas e fugidias. Queria sentir o sopro de suas asas batendo, fazendo vento nos meus cabelos cacheados. Eu desejava o pássaro sem corpo, e assim deixava a música passear pelos meus orifícios, e voltar mansa para os acordes do tempo. 

Voa música, voa em arrepios surdos, em tempos suspensos, em sonhos perdidos para sempre. Em sonhos vivos de coração refeito, repleto de ausências e magnitudes arraigadas na pele desperta.

Ensueños, era o que tocava. 
Dentro e fora de mim.