segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Páginas em branco e silêncio de mim




Tem tanta coisa. Um tempo que se abriu em tempos suspensos. Sem ontem, nem hoje, um ano que se foi em 10. Calendário de nuvens.

E eu voltei aqui para pedir desculpas por tudo que não foi, por tudo que eu não soube, por todos os buracos errados, todas as travessas de enganos fundos, todas as dores que não cessam. Pelas perdas, pelos desvios de quem nunca mais volta o mesmo, pelo tempo que nunca mais volta o mesmo. Por você que eu não soube, por você que foi me olhando distante e me pedindo de volta, por você que eu deixei escapar pelos dedos do meu próprio desajeito, por você que eu soube amar inteira e tanto. Assim eu fui e assim eu amei, sim eu amei, amei sem qualquer pedaço faltando, a não ser aquele que ficava bem ali, por entre a perplexidade e a dor do desacerto, aquele pedaço que eu custei a enxergar e abraçar com minhas pernas bambas de covardia. E assim o pedaço veio mas ele não cabia no amor, ele não era amor e eu não o amava. O nosso desacerto cresceu e ganhou asas de dragão, dragão que cuspiu fogo e devastou plantações inteiras do nosso jardim. Dragão de olhos acesos que não conseguiu queimar a vontade de flores e frutas no pé do que é nosso. 

Olho em volta e me reconstruo de novo, saindo e voltando de um lugar que eu não sei onde é. Páginas em branco e silêncio de mim. Linhas tortas que ainda não vêm.  Uma hora elas chegam, eu sei, elas hão de chegar vivas traçando caminhos de arco-íris, daqueles que eu aprendi a tirar da cartola - como um dia me ensinou o poeta. Eu estou só e eu me assusto. Assusto-me comigo assim, pálida diante do susto. Imóvel diante da queda. Essa não sou eu, e essa sou eu toda. Ame-me, baby, que eu sou tudo que posso ser renascida e crua. 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dos amores


Por Silvia Badim e Renata Penna
Ilustração de Ana Vasconcellos




Eu achava que amar tinha a ver com certezas. Eu estava errada, amar é não ter certeza nenhuma de coisa nenhuma. É andar na corda bamba de olhos fechados, sem rede de proteção para suavizar o tombo. Eu achava que quando a gente ama, tem segurança e tranquilidade, mas não. Até que tem leveza e paz, mas é uma paz feita de tempestade, uma paz toda colorida e intensa feito olho de furacão. Eu queria encontrar nesse amor que eu esperei a vida toda um sono tranquilo sem pesadelos, mas quando ele veio eu descobri que o sentimento verdadeiro é assim, sobressalto. É de susto que ele se alimenta, é de reviramento que se faz um amor de verdade, senão é quererzinho besta que por qualquer coisa se esvai, amor de verdade não. E eu, que achava que no dia em que eu encontrasse o tal que tanto se fala, teria todas as respostas, agora eu sei. Eu sei que quando se ama se encontra novas perguntas e novas coisas pra se pensar e novos caminhos e novas delícias boas de experimentar. E eu sei que o amor pode doer também. E eu sei que é bom, mesmo na dor. E eu sei que não precisa ser arrumadinho nem perfeito nem cor de rosa porque não é pra ser. E agora eu sei que não é que a gente se misture nem deixe de ser o que é para estar com o outro, é outra coisa, é aprender a caminhar solitário, mas de mãos dadas. 

E é por isso tudo que hoje eu sei que eu amo. É, eu amo você, eu posso dizer, deixo vir ao mundo essa frase tão difícil que agora sai assim tão fácil, que escorrega pela língua, que é tão óbvia e boa de falar, desse jeito mesmo, clara e repetidamente. E é tão bonita essa profusão toda de sentires, é bonito esse amor que invade assim, sem rumo certo, sem resposta ou cama esticadinha. A gente se encontra é aqui na beira desse mar imenso, revolto, de ondas grandes e volumosas. Esse mar salgado que quando a gente pisa e arrepia é também feito de vento calmo e águas plácidas, de estrelas coloridas e lua cheia refletida no escuro. Porque é assim, é calmo e é revolto, é intensidade e mansidão, é assim quando é real e é preciso coragem para se querer aquilo que se é, para se querer os contraditórios que vem com essa força toda, para enfrentar a si próprio refletido nos olhos do outro. Coragem de querer mais e querer sempre, para olhar profundamente e mergulhar nos olhos  sem porto de chegada, para querer fazer da vida um lugar mais bonito só para poder acolher o outro. Coragem para beijar as fragilidades que pingam em lágrimas insensatas, para soprar bem forte as nuvens carregadas, para suspirar como tola a cada gesto de carinho e a cada descoberta de caminho conjunto. 

Porque amar é também essa coragem toda, é ousadia querer fazer casa, de construir mais e melhor, de querer montar o futuro mesmo sabendo que o futuro é miragem e aposta, é ingenuidade boa de querer que o outro nunca mais vá embora. E é também essa dor toda, essa dor dialética, a dor que permeia tudo que é grande, a dor de se saber finito diante do universo das estrelas, de se saber pequeno diante do vôo cego de mãos dadas, de saber tudo e não saber nada, de sentir de olhos vedados e desistir de colocar os óculos. 
E aqui então eu enterro todas as pequenas certezas e de dentro da minha solidão planto as minhas mãos nas suas. Com os pés descalços no chão de terra reverencio a grande e única certeza de estar ao seu lado pulando nesse abismo nosso que gela os ossos, de estar nua e cheia de medo bom, de estar cavalgando sem cela e de, sobretudo, estar viva, experimentando essa vida que faz sentido porque você me testemunha, porque você me olha e me adentra as células, porque a gente se mistura e se guarda em conchas separadas, porque tudo faz sentido mesmo quando não conseguimos enxergar sentido algum. 

E é nesse lugar mesmo que eu quero ficar, é aqui nesse turbilhão que eu continuo falando de amor, que eu pego os lápis para colorir a quatro mãos essas tantas páginas em branco que estão por vir. Porque aqui é onde amanhece com sol, é onde a luz brilha no horizonte, é onde os pássaros cantam e a mágica acontece. E eu quero a mágica.  



terça-feira, 19 de junho de 2012

A Morte do Touro


Corpos que se esfregam para fazer o amor sair pelos poros. Corpos cansados, exaustos no riso e no gozo. Bocas, línguas, falos. Um encontro que já é despedida.

Medo de perder o que já foi conquistado, medo de ser devorado nas garras do dragão do prazer. Olhar para todos os lados e ver os presentes pelos deuses ofertados: o filho que corre pelo quintal, o amado que acolhe as lágrimas que nunca saberá por que chorada. Choro que lamenta a perda do que nunca lhe pertenceu.

Na escura noite fria dos pensamentos, insônia como no primeiro dia. Agora o fogo que queima e parte, deixando o frio do vazio. Não é uma rejeição. Mas me sinto menina nesta hora, a mesma deixada no berçário, a esquecida pela mãe, a esquisita da escola.

Sobre o touro, na beira do rio, retirar a faca da bainha e cortar o animal que me carrega. Comer a carne crua, beber o sangue quente, colocar para digerir o que se sente. Calar o impulso, de novo e outra vez, colocando-o a trabalhar para mover meu corpo, sem ser carregada por ele.

Quero fechar as portas, trancar os portões, dizer que nada aconteceu, voltar no tempo e não aceitar o convite. Negar a transformação. Como cantou o poetinha: “se foi para desfazer porque é que fez”?

Minha vida, talvez seja como meu parto, rápido, intenso, sagrado e profano; mítico e carnal. Quando começou já era o fim. Era o que eu daria conta. O exato tempo. Nem mais, nem menos. Resolvo deixar as portas abertas para a brisa. Entrego a alma para conduzir nesta nova etapa. Abrir mão do que negava e me mostrou uma nova faceta de mim.

Não é só o lombo do touro que me levava a ti. Ele morto, devorado e enterrado faz brotar as florestas que crescem incondicionalmente na luz do luar. Ainda tenho seu abraço, seu carinho e um trabalho. Preservando no jardim secreto as lembranças daquilo que não pode ser queimado. As almas agora balançam no compasso do sem fim.

E faz de conta que é fácil, como disse Clarice: "Faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro - pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado".

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Rastros do Vento


Por: Kali

Estava fria aquela noite em que sentava na frente do fogo para ver as salamandras a bailar. Resolvi tentar entrar para que o calor não se dissipasse com os ventos das dúvidas que baderolavam meus alicerces.

O fogo bailava dentro e fora de mim, como um sopro que faz flamejar as chamas. Eu tentei fugir. Ensinaram-me a ser assim: seguir pela estrada onde não passa o lobo mau, obedecendo a voz feminina da certeza estabelecida.

Eu estava com minha cesta de doces, comendo um a um os desejos diante da floresta escura ouvindo ao longe o uivo do vento. O fogo bailava dentro e fora de mim e eu já não conseguia ouvir nada além do pululante som das brasas carmins que saltavam em cada célula minha desejante pelo caminho escuro e sombrio daquilo que chamam tropeço.

Senti medo do vento. Ele parece ser incontrolável e penetra pela fresta da dúvida. Abri uma janela, mas ele escancarou as portas. Tirei a roupa e com a pele eriçada pelo frio e pelo medo, com os mamilos endurecidos pelo desejo, deixei que o vento penetrasse em cada parte de minha alma. Varreu minhas insanidades, papéis amarelados e o cheiro de água represada. Incendiou a fogueira e desapareceu deixando um rastro de lembranças e aroma de novidade.

As velhas roupas mofadas queimaram-se nas labaredas. Corri pelas planícies nos dias frios e chuvosos, nua, a procura do vento. O suor do rosto escorrendo pelo corpo molhado e quente, como a língua dentro da boca e nos lábios das intimidades.

O vento a penetrar-me muitas vezes serpenteando em todo o meu corpo. Meus pés cansados e acelerados para  não perder a sensação na estrada. O vento, a estrada, o calor, a língua e as passadas orquestradas pelo som da respiração ofegante mesclados com sons antigos vindos de Avalon.

As brumas desceram e fizeram as luzes dos postes parecerem ouriços de luz. O coração pulsante, o sangue por toda a parte, as pernas cansadas e o vento a reger a velocidade da busca.

Por fora uma leveza como quem estica as asas para voar nos redemoinhos de ar. Por dentro um calor, energia transbordante a lançar-me diariamente para estrada tentando buscar novamente o sonho do vento.

O vento faze-me brilhar e dançar como brasas tocadas pelo sopro.E tudo que eu quero é um pouco mais de vento em minhas chamas.

domingo, 29 de abril de 2012

Sem palavras


Por Silvia Badim e Kiara Terra


Desenho de Ana Vasconcellos




Se a vida toda coubesse em palavras eu escreveria. Sem preguiça cada letra. Frases inteiras, sentenças feitas, espaços vazios preservados. Nelas o intervalo entre nossos olhos. Se coubesse, se fosse o suficiente, eu teria feito. Mas não. A vida escapou-me do controle. A dança enlaçou-me a cintura, fluindo em seu ritmo intenso, requebrando e levando-me para além de mim. Um sol bonito ensurdeceu meus ouvidos, e encharcou minhas mãos. Tomou pra si minha boca e meu pensamento e, ao invés de escrever, eu vivi. Sem vírgula, cada momento. Vida enchente, vida humana do aqui-e-agora. Vida corredeira, que me surpreende a cada passo em que não penso, e não escrevo. Em que simplesmente sinto, com todos os sentidos despertos para o que corre em sangue e vísceras, em realidades que me escapam às palavras. A vida me ocupa de viver. 

 Aconteceu e não me lembro quando. Um arrebate sem tempo. Um vento que me levou sem que eu pudesse entender o que me levava. Foi então que eu senti, com o peito aquecido pela luz: sem tocar o chão não há como escrever. Sem pisar a terra não há como fazer poesia tangível. No voo palavra é vento transpassando a pele. No chão palavra é vida possível. Vento sem frio. Mergulho acolhido e quente. Amor não pode rimar com guerra, pois amor é sorte. Amor não pode ser reticência em espera sem solo. Depois de tocar a pele presente do outro, não há retrocesso possível. Depois de acessar o caminho secreto, viver é flor que desabrocha sem tempo. É perfume que adoça a alma e aumenta a fome. E eu tenho fome de vermelho. Vivo e vivido em desejos de ondas de mar. 

Eu rio a brincadeira bonita. Rio da sorte de querer viver. Secretamente antes, agora num declarar de janelas. Agora em vida de correr descalço, sentindo cada folha verde. 
O tempo das esperas havia terminado. Agora é deslize de apenas ser, nua, sem subterfúgios poéticos de algum dia. Joguei fora minhas réguas que nunca soube usar direito. Sempre foram pequenas para os meus desmedidos.

Estiquei palavra pra cobrir javali. Dobrei lavei e quarei ao sol, e nenhuma frase podia salvar-me de mim. Era nado em direção à correnteza mais forte de estar viva. Estava diante do salto. Cachoeira colossal. Saltei. Corpo na correnteza. O tempo lavou meus cadernos, molhou cada folha, desperdiçou os dias ainda não vividos e li: vá correr  sem medo.

Você nasceu agora, aqui de dentro de mim, e diante disso tudo tem música e sol. 


terça-feira, 13 de março de 2012

Sorriso de olhos verdes

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos




Talvez fosse uma dor que ainda existisse lá dentro, e latejasse sem sentido. 
Em momentos inesperados, sempre, como naqueles em que estamos felizes, beirando a intensidade do muito. 
O muito que em algum lugar ainda se assombrava pela ausência. Talvez ainda me doessem as ausências, e os revesses dos mergulhos nos abismos que culminaram em rochas pontudas e mares revoltos.  

Uma fragilidade me assombrava os olhos. 
Humana, demasiada, fragilidade de se pegar no colo com vontade de choro. Fragilidade de desamparo.
Infantilidade consentida que se escondia na vida adulta de tantos afazeres duros. De amores que não conseguia tocar assim, com as mãos totalmente desarmadas. 
Os dedos ainda sangravam, e eu não sabia como contar das feridas que se escondiam embaixo das unhas sempre coloridas e retocadas de maquiagem. 

As intensidades sempre me foram imãs. Atrações quase fatais, obstinadas pela vontade de se atirar no vermelho que dilacera tudo por dentro. Quase um vício, uma ansiedade, um ferrugem dourado que corrói tudo por dentro. Corrói deixando um lastro de beleza pelas coisas vividas, que um dia hão de se transformar, se possível, em asas de borboletas. Amor e dor, sim, amor e dor. Não sabia mais como desvincular um do outro, como se ambos fossem irmãos de mãos dadas. Duas faces da mesma moeda. 

Canso-me. Eu não quero mais. Não quero mais a dor. Deito-me sem pressa de levantar, com vontades outras de renascer em possibilidades novas. 
Estiro-me na grama e olho o céu, desejando o amor facinho, bonito de dia de sol. Todos os dias estiro-me, um pouco, mentalizando o mesmo desejo. 

Foi quando te vi passando. Lá deitada olhei para cima, e seu sorriso de olhos verdes me olhou com alegria. 
Verde vibrante, embora com desconfianças dilatadas nas pupilas. Verde desejo, verde presença. Verde esperança, verde vontade.
Verdes possibilidades. 
 
"Eu quero", pensei. E penso, a cada dia. 
E eu quero assim, o sorriso e o muito que pode ser leve. As desconfianças enfrentadas, que são passos para se construir um novo lugar. 
Um lugar de abrigos mansos e de felicidades espalhadas. 
Um lugar possível. 

Olho no olho, sem roupas que não nos cabem mais. 
Dança comigo?

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um canto qualquer

Por Silvia Badim
Desenho de Ana Vasconcellos






*texto escrito em fevereiro de 2011. 


Depois que ela foi embora sempre faltava alguma coisa.

A cidade cantava um vazio qualquer. Um cor de rosa a menos no horizonte, uma nota suave que se escondia no entardecer do dia.
Um sopro de mistério que escapava do cair da noite.

Faltava sempre uma coisa a mais. Uma flor amarela sobre o muro, um passarinho que beijava o jardim. Aquela gota de orvalho pendurada na folha verde pela manhã. 
Essas coisas pequenas, você sabe. Que se ajeitam quentes no coração da gente.

Faltava uma magia qualquer. Aquele vento que me invadia durante a tarde, em sorrisos incontidos. Aquele frio sorrateiro que de repente percorria a espinha, bem antes do telefone vibrar uma mensagem qualquer. 
Aquele calor que coçava o pescoço e subia desavisado, fazendo corar as bochechas tímidas.
Ah, aquela esperança vermelha de ver tudo florescer em outras cores... Todo aquele universo, que me encolhia inteira no olhar do outro. Todo o outro que cabia inteiro nesse universo tão meu. O corpo mole, vencido. Como faltava. Como ela me faltava em silêncio.

Faltava-me também aquela muda poesia de estarmos uma de frente a outra, em um canto qualquer da cidade. Amplidão que nos acolhia, simplesmente. Sem perguntar nada. Não havia perguntas. Havia o espaço, apenas, com seus pequenos refúgios de tempos suspensos.

Tempos em que nos colhíamos, inventadas uma na outra. Tempos de surpresas boas, de admiração de olhos bem abertos. De tocar o que estava por trás de. Como ainda me faltam esses tempos.

A cidade canta um canto qualquer de ausência. Uma melodia à toa de saudade. Um canto doce que me lembra de não estar mais lá. E de estar, a todo tempo.

Imaterial canto da presença rarefeita, que se dissipa no céu no cerrado.